2023-11-28
Jovens Reduzidos a um Número
Nota: este artigo é uma versão mais longa (com mais dados) de artigo publicado no jornal Público no dia 27 de Novembro de 2023
Foi recentemente divulgado o primeiro estudo significativo sobre a saúde mental dos alunos da Universidade de Lisboa (UL), indicando uma situação preocupante: apenas 36,4% dos alunos se dizem motivados para realizar o seu trabalho académico, e só 14,5% se sentem bem a maior parte do tempo. Pelo menos um quarto dos alunos é identificado com ansiedade (26.4%) ou depressão (25.2%), com 15,3% qualificados em situação extrema de stress, isto é, em burnout. O estudo não foi publicado e não conhecendo a metodologia exata, a comparação com outros estudos é difícil. Mas sendo uma estimativa correta e comparável, a saúde mental na UL estará muito pior do que nas universidades americanas onde ansiedade e depressão afetam cerca de 12 e 9% dos alunos respetivamente,[LR1] mas abaixo de níveis observados no Reino unido (42,1% com ansiedade e 34,5% com depressão)[LR2] .
A subordinação e
submissão involuntária por tempo prolongado é um fator conhecido na ansiedade e depressão e na relacionada falta de motivação. Por outras
palavras, estas patologias são prevalentes em contextos em que as pessoas não
têm controlo sobre as suas vidas, especialmente em jovens. Não é, pois, de estranhar que depois de tantos
anos num sistema educacional onde têm pouca escolha ou controlo sobre a sua
vida, tantos alunos se sintam desmotivados e com patologia mental severa.
A filósofa de
educação italiana Maria Montessori, disse em 1951 na UNESCO que as “crianças e
jovens são uma população sem direitos que é crucificada em bancos de escola por
toda a parte e que---apesar de toda a nossa conversa sobre democracia,
liberdade e direitos humanos–está escravizada
na ordem escolar, por regras intelectuais que nós lhe impomos.” Também Paulo
Freire, na sua pedagogia dos oprimidos de 1968, qualificou o sistema de
educação tradicional como “educação bancária,” onde alunos são “como um cofre vazio em que o professor acrescenta
fórmulas, letras e conhecimento científico até [os] ‘enriquecer’.” É assim que muitos educadores modernos ainda pensam a
escola, daí tanta conversa sobre medir “aprendizagens perdidas”– como se o conhecimento fosse descarregado em fardos de conteúdos
platónicos para professores depositarem nos cofres vazios dos alunos, em vez de
um processo corpórea de pesquisa automotivado como é visto pela ciência cognitiva.
Infelizmente, como Montessori, Freire e outros argumentaram, esta forma de organizar a escola cria um diferencial de poder entre aluno e professor/sistema educativo que retira ao aluno o controlo sobre a sua vida, a sua agência humana, tão importante para a saúde mental. O objetivo desta submissão involuntária imposta aos alunos, será produzir trabalhadores submissos que aceitem desigualdade e injustiça com naturalidade – argumento desenvolvido por estes e outros pensadores, como Daniel Greenberg ou Louis Althusser, mas fora da razão deste artigo.
Existem muitos
pontos na educação portuguesa onde se poderia substituir professores-autoridade
“descarregarregando aprendizagens”, por pesquisa corpórea e automotivada. Do
infantário à universidade, a escolha curricular, empenhamento físico e
automotivação deveriam ser a norma, não a exceção. Mas foco-me no ápice da educação pré-universitária, quando após 12 anos com
raras oportunidades de escolha e automotivação sem ser fora da escola, cada
aluno fica marcado e reduzido a um número: a sua média de notas (de cadeiras
chave e exames). É este numerus
clausus que decide os cursos universitários a que jovens podem aceder,
independentemente da sua real vocação ou desejo. É interessante que em latim
este termo quer dizer “número fechado,” porque é realmente numa clausura de
difícil acesso que o nosso sistema educativo coloca a universidade. É, pois, natural
que grande parte dos jovens rejeitados da sua vocação se sintam sem
livre-arbítrio sobre a sua própria vida, seguindo-se a desmotivação como grande
fator de depressão e ansiedade.
Embora muitos defendam o numerus
clausus como a forma mais justa de selecionar os melhores alunos, é sabido
que as notas escolares dependem de fatores como escolaridade publica ou privada, dinheiro e educação da
família, e até do género (raparigas tendem a ser mais motivadas e rapazes de contextos desfavorecidos têm pior aproveitamento do que
raparigas na mesma situação.) Já os exames com tempo limitado também não escolhem necessariamente
quem é mais apto a resolver até os problemas dos próprios exames (e tendem a
enviesar a favor de rapazes.) Além disso, a pretensa meritocracia do numerus clausus é uma tautologia: o sistema académico define o
que é considerado “melhor” e depois declara que os aceites são os “melhores”. Mas onde está a demonstração que as médias e
exames mais altos identificam as pessoas mais aptas para determinada profissão?
Alguém acha que os melhores médicos se escolhem pela capacidade de receber e
memorizar “aprendizagens” de Português ou Biologia no ensino secundário?
Mais fundamentalmente
ainda, mesmo que tivéssemos uma medida perfeita de mérito (que não é possível
por não sabermos como medir e priorizar tipos diferentes de inteligência),
porquê selecionar só os melhores para determinados cursos? Quando o número de
pessoas que podem entrar na clausura é muito limitado, a falsa meritocracia (tautológica)
reduz a diversidade de pessoas treinadas para determinada profissão, sem
garantir aptidão. De facto, a maioria dos alunos que entram nos cursos com médias
de entrada mais altas – que são os que levam a profissões mais bem pagas – têm
pais com educação universitária e nível socioeconómico mais elevado. Portanto,
o numerus clausus reduz a diversidade propagando privilégio e elitismo.
É importante frisar que o
numerus clausus não é a única forma de organizar o acesso ao ensino
superior. Nas universidades de topo dos EUA a nota de exames é opcional, sendo o acesso decidido por fatores múltiplos como currículo académico, entrevista, atividades
extracurriculares, ensaio, etc. Na Bélgica e na França, que levam o direito
constitucional de acesso à universidade a sério, os alunos entram no curso que
querem (com algumas restrições para cursos como medicina e engenharia civil).
Críticos do
sistema de acesso livre vigente na Bélgica e na França, avisam que nesses
sistemas o entrave simplesmente acontece mais tarde, porque os alunos têm de
passar provas difíceis após os primeiros anos na universidade, havendo quem tenha
de mudar de curso ou mesmo não acabe a universidade. Mas a comparação com
Portugal não mostra isso. Segundo dados da OCDE, a percentagem de alunos que não completam o
curso em que entraram (após 3 anos da duração teórica do mesmo) é de 72% em
Portugal, 71% em França, e 68% na Bélgica Flamenga---na Bélgica Francófona o
valor é 52%, mas não é diretamente comparável porque se refere apenas a escolas
de elite (hautes écoles e écoles des arts), enquanto nos outros
países se refere a todos os bacharéis/licenciaturas. É importante notar que no caso da França e da
Bélgica os alunos entram nos cursos que quiserem, enquanto em Portugal a base
da proporção apresentada refere-se apenas aos alunos que passam o numerus
clausus. Isto é, mesmo impedindo grande parte dos alunos de entrarem no
curso que querem, a proporção de alunos em Portugal que termina os cursos em que
entram é muito semelhante à de países onde entram todos no curso que querem!
Mas a situação é
ainda mais embaraçosa se considerarmos a proporção de alunos que termina um
curso STEM (ciência, tecnologia, engenharia ou matemática), no mesmo (ou
noutro) campo e nível, mas não necessariamente no curso em que primeiro
entraram: cerca de 63% (71%) em Portugal contra 74% (77%) na Bélgica Flamenga
(OECD não apresenta estes dados para França). Em suma, muito menos alunos
acabam cursos STEM[1] em
Portugal após numerus clausus, do que na Bélgica Flamenga onde os alunos
entram no curso que querem após terminar o secundário! Isto é, não há qualquer
vantagem em excluir à partida alunos dos cursos em que eles querem entrar,
retirando aos jovens o controlo sobre as suas próprias vidas, com enorme custo
para a sua saúde mental e realização pessoal.
É importante
frisar que é uma decisão política não dar aos jovens maior controlo sobre a sua
educação e acima de tudo bloquear escolhas importantes para a sua vida futura. Apesar da revolução de abril há quase 50 anos, e a
promessa de acesso ao ensino superior para todos da constituição que se lhe
seguiu, não houve ainda revolução do modo de ensino. Continuamos a querer
produzir trabalhadores submissos e habituados a conviver com a desigualdade da
autoridade, com grande custo para a sua saúde mental e realização pessoal. Não tem de ser assim, não temos que nos habituar a tudo. Se queremos criar agentes de mudança
saudáveis, com garra para a inovação, temos de começar por dar aos jovens maior
controlo sobre as suas vidas, em vez de os reduzir ao número que os fecha fora
da sua vocação e motivação.
[1] Noto que a proporção de alunos que
completam cursos STEM é muito pior para homens do que para mulheres, 59% para
80% em Portugal e 67% para 85% na Bélgica Flamenga. Um assunto importante, mas
separado.
[LR1]Pedrelli, P., Nyer,
M., Yeung, A. et al. College Students: Mental Health Problems
and Treatment Considerations. Acad Psychiatry 39,
503–511 (2015). https://doi.org/10.1007/s40596-014-0205-9
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