2022-03-01
Ser emigrante português é ser cidadão de décima classe e deixa muitos democraticamente apátridas
Publicado em Público, 22 de Março de 2022.
A controvérsia sobre o voto da emigração que foi anulado e levou à remarcação das eleições nos círculos
europeus, ofusca uma
muito maior afronta à cidadania dos emigrantes consagrada na lei eleitoral: os
seus votos contam apenas para 4 dos 230 deputados da Assembleia da República.
Segundo o Relatório da Emigração de 2020 no Portal
das Comunidades Portuguesas, em 2019 mais de 2.6 milhões de cidadãos portugueses nascidos em Portugal
encontravam-se a viver no estrangeiro − números que não incluem os cidadãos portugueses
filhos desses 2.6 milhões (os chamados, Luso-descendentes). Portanto, os cerca
de 10 milhões cidadãos residentes em Portugal elegem 226 deputados, enquanto os
2.6 milhões de cidadãos residentes no estrangeiro elegem apenas 4. Aproximadamente
44 mil residentes elegem cada deputado, mas são precisos 650 mil emigrantes
para conseguir o mesmo. Isto é, em termos de representatividade democrática, um
cidadão emigrante vale 7% dum cidadão residente. Para caracterizar esta
discrepância na representatividade de pessoas que são todas supostamente
cidadãs da mesma República, o epíteto cidadão de segunda não chega, mais
correto seria dizer que os emigrantes são cidadãos de décima classe.
É interessante
notar tantos artigos em Portugal sobre injustiças nas democracias dos outros,
mas tão pouco debate sobre este tratamento tão discriminatório de concidadãos na
nossa própria democracia. Quando tento abordar este tema oiço várias
justificações que penso valer a pena discutir. Num extremo, há quem diga que os
emigrantes nem se quer deviam ter deputado nenhum. É espantoso, mas infelizmente
comum, que haja quem abertamente defenda que se deve retirar a cidadania a
concidadãos por estarem a residir e trabalhar fora de Portugal em determinado
momento. É importante notar que não é normal que tal aconteça em democracias
ocidentais. Por exemplo, apesar dos problemas eleitorais que os media portugueses
adoram discutir, um cidadão americano não perde qualquer representatividade
democrática por viver noutro país por qualquer período de tempo−devo dizer que tenho dupla cidadania americana e portuguesa.
Uma justificação
menos extrema tem a ver com o conceito de representação material no processo
legislativo. Deste ponto de vista, os emigrantes, por não viverem em Portugal,
são vistos como cidadãos não vinculados às leis que o parlamento delibera. Isto
é, os emigrantes são vistos como cidadãos apenas simbolicamente – e não
materialmente – ligados à República.
Daí a sua representatividade dever ser apenas simbólica. Nesta perspetiva, os
emigrantes são tipo aqueles estrangeiros que gostam da seleção portuguesa de
futebol, mas não “arriscam a pele” em Portugal−não têm “skin in the game”
para usar a expressão que Nassim Nicholas Taleb tanto gosta.
Esta visão do emigrante
eternamente desterrado – e daí desacoplado materialmente da Républica −está
obviamente ultrapassada no mundo global do século XXI, especialmente para
emigrantes na União Europeia, nos países lusófonos e até nos parceiros atlânticos. Em meados do século XX talvez ainda fizesse
sentido pensar que os emigrantes fossem em barcos para portos distantes dos
quais nunca mais regressavam. Mas não é isso que se passa hoje. Os emigrantes,
que pertencem a todas as áreas e níveis de educação, vão e vêm, têm em Portugal
filhos, pais, família, propriedade, investimentos, produção intelectual e
criativa, etc. Grande parte deles estão tudo menos desacoplados da Républica.
Só uma visão
muito paroquial pode pensar que os cidadãos emigrantes não estão materialmente
envolvidos no país e que devem ser excluídos ou apenas incluídos
simbolicamente. Permitam-me partilhar um pouco mais da vida pessoal apenas para
exemplificar o tipo de relações bidirecionais, concretas comuns a muitos outros
emigrantes. Sou professor universitário e cientista há 30 anos nos EUA. Mas faço
contribuições materiais e intelectuais diretas para Portugal diariamente e, vice-versa,
é óbvio que as leis deliberadas pelo parlamento me vinculam como cidadão. Os
meus filhos, nascidos e crescidos nos EUA, decidiram viver em e contribuir para
Portugal. Porquê que o meu voto deve contar apenas 7% do voto de qualquer outro
cidadão que tenha contribuído materialmente, intelectualmente e geracionalmente
para Portugal? Noto que os EUA não retiram aos meus filhos o direito de voto a
100% para qualquer eleição no círculo nacional em que estão registados por
estarem a viver em Portugal (e terem dupla cidadania). E porque haveriam de
retirar? Contribuímos para ambos os países a todos os níveis, incluindo em
patriotismo.
Uma outra
justificação, ou receio, é que dado o elevado número de emigrantes, se estes tivessem
a mesma representatividade, Portugal poderia ser governado “por telecomando”
por quem não vive no país. Pelo que escrevi acima, é claro que pelo menos
grande proporção está materialmente envolvida, com muita “skin in the game”
em Portugal. É perfeitamente razoável que a Républica institua critérios para
que a cidadania seja mantida −por exemplo, os cidadãos americanos têm
que pagar impostos aos EUA onde quer que residam, havendo acordos bilaterais
com grande parte dos países para evitar dupla taxação. O que não é razoável é
que a cidadania seja retirada para os simbólicos 7%. Até porque a experiência
de 2.6 milhões de emigrantes deveria ser valorizada na deliberação democrática.
Afinal, quem melhor do que eles para saber porque tiveram que sair do país? Ou
quais os mecanismos que permitem fazer carreiras produtivas noutros lugares?
Pode Portugal continuar a dar-se ao luxo de ignorar esse feedback político?
Quem tem medo dele? Talvez um pouco mais de “telecomando da emigração” no poder
ajude a desenvolver um país em que os jovens não tenham que emigrar mais.
É importante
também ter em atenção que grande parte dos emigrantes portugueses não tem outra
nacionalidade. Quando Portugal lhes retira a sua representatividade,
reduzindo-a a 7% dos outros cidadãos, a grande maioria não tem
representatividade eleitoral noutro país. Ficam assim democraticamente
apátridas. Essa situação – na qual estive durante mais de 20 anos − é uma
afronta aos direitos de cidadania, e não deveria ser constitucional. Não me admira que a maioria dos emigrantes
não vote e ache esta última controvérsia hipócrita e apenas
usada para jogo partidário. Aliás, dada tamanha discriminação, advogo um movimento de desobediência
civil. Sugiro que é do interesse democrático que os emigrantes se mantenham
registados em círculos eleitorais nacionais em vez dos círculos de emigração
onde residem. Bem como organizarem-se em partidos com representação parlamentar
que advoguem pelo fim desta discriminação.
Ignorar a
cidadania dos que tiveram que sair por falta de oportunidade estará porventura
enraizada num país que no fundo ainda age como metrópole de uma Républica
imperial, com uma noção de nacionalidade desatualizada. São tiques de superioridade difíceis de ser
reconhecidos por um regime que imagina que exorcizou os fantasmas do antigo
regime. Mas quem como eu nasceu “branco de segunda” em Angola, está farto de
ser tratado como cidadão de décima classe num país para o qual já tanto
contribuiu.
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