2006-10-09
As voltas da irracionalidade
Este assunto já está um pouco caducado, mas lendo agora o contra-a-corrente, não consigo deixar de me entristecer pelo forma como o Vasco Pulido Valente e os seus fans neo-conservadores à lá Portuguesa descem cada vez mais para uma posição verdadeiramente e irracionalmente xenófoba---as suas cores verdadeiras ou mais um MacGuffin? O VPV, transcrito pelo MacGuffin diz a propósito do tal discurso de Bento XVI:
“Basta lembrar que desde o princípio (desde Orígenes, por exemplo) se construiu sobre a fé cristão um dos mais sublimes monumentos à razão humana e que o Ocidente, apesar da "Europa", não existiria sem ele. A fé muçulmana não produziu nada de remotamente comparável e, durante quinze séculos, sustentou uma civilização frustre e parada. ”
Devo dizer logo à partida que gostei imenso do discurso original de Bento XVI---e fiquei ainda mais bem impressionado com o facto de ele não ter pedido desculpa. O VPV tem toda a razão quando diz que os académicos gostam dele. É verdade, pelo menos ele mantém um discurso racional e factual na medida do possível. Infelizmente o mesmo não se passa ultimamente com o VPV. O excerto acima só poderia vir de alguém de letras, com pouco conhecimento da história da ciência---ou então alguém com uma motivação puramente incendiária, muito contrária à de Bento XVI e da própria razão.
Talvez a história de Gerbert de Aurillac, mais tarde o Papa Silvestre II, curiosamente o primeiro Papa do segundo milénio, seja algo que VPV deva ler. Numa altura em que a razão não abundava de todo na tal Europa “racional desde o início”, muitos cristãos europeus seus contemporâneos pensavam que ele era um emissário de Satã. Um senhor muito interessante, Gerbert estudou em Barcelona, mas também nas cidades Muçulmanas de Córdova e Sevilha. Foi ele quem introduziu ou disseminou na Europa uma série de ideias e tecnologias árabes (os tais que em em 15 séculos não produziram nada) como o ábaco, os numerais árabes, o astrolábio, etc. Interessante que a sua racionalidade (importada em grande medida do Mundo árabe) talvez tenha estado na origem do mito que teria um pacto com um demónio. A irracionalidade dá voltas estranhas, ou não fosse este o mundo zen do yin-yang.
Outras contribuições de salientar são as de Muhammad ibn Musa al-Khwarizmi e Abu-Yusuf Ya’qub ibn Ishaq al-Kindi. Do nome do primeiro, descende a palavra algoritmo, e a suas contribuições para matemática, geografia e astronomia são muitas e importantes. Já o segundo, provavelmente mais conhecido pelo seu trabalho em filosofia (curiosamente sobre a relação entre razão e revelação, devendo em muito a Platão), contribuiu bastante para a análise estatística de textos (algo em que eu trabalho) com aplicações à criptografia. Um trabalho muitíssimo interessante e absolutamente original que, por via muito indirecta, contribuiu para a morte de Maria, Rainha dos escoceses, cujos ajudantes, por desconhecerem o trabalho de al-kindi, usaram um método de criptografia obsoleto (ver The Code Book de Simon Singh).
Já agora, o MacGuffin que gosta tanto de brincar com a irracionalidade do Islâmismo radical (que deve de facto ser apontada) e enaltecer qualquer movimento de Israel, porque não explica a "racionalidade" das cluster bombs lançadas no Líbano? Pelo menos Bento XVI analisa este assunto da razão e a falta dela de vários lados. De facto, eu diria que no seu discurso o maior ataque é feito aos fundamentalistas cristãos e às suas formas literais de perceber a Bíblia.
“Basta lembrar que desde o princípio (desde Orígenes, por exemplo) se construiu sobre a fé cristão um dos mais sublimes monumentos à razão humana e que o Ocidente, apesar da "Europa", não existiria sem ele. A fé muçulmana não produziu nada de remotamente comparável e, durante quinze séculos, sustentou uma civilização frustre e parada. ”
Devo dizer logo à partida que gostei imenso do discurso original de Bento XVI---e fiquei ainda mais bem impressionado com o facto de ele não ter pedido desculpa. O VPV tem toda a razão quando diz que os académicos gostam dele. É verdade, pelo menos ele mantém um discurso racional e factual na medida do possível. Infelizmente o mesmo não se passa ultimamente com o VPV. O excerto acima só poderia vir de alguém de letras, com pouco conhecimento da história da ciência---ou então alguém com uma motivação puramente incendiária, muito contrária à de Bento XVI e da própria razão.
Talvez a história de Gerbert de Aurillac, mais tarde o Papa Silvestre II, curiosamente o primeiro Papa do segundo milénio, seja algo que VPV deva ler. Numa altura em que a razão não abundava de todo na tal Europa “racional desde o início”, muitos cristãos europeus seus contemporâneos pensavam que ele era um emissário de Satã. Um senhor muito interessante, Gerbert estudou em Barcelona, mas também nas cidades Muçulmanas de Córdova e Sevilha. Foi ele quem introduziu ou disseminou na Europa uma série de ideias e tecnologias árabes (os tais que em em 15 séculos não produziram nada) como o ábaco, os numerais árabes, o astrolábio, etc. Interessante que a sua racionalidade (importada em grande medida do Mundo árabe) talvez tenha estado na origem do mito que teria um pacto com um demónio. A irracionalidade dá voltas estranhas, ou não fosse este o mundo zen do yin-yang.
Outras contribuições de salientar são as de Muhammad ibn Musa al-Khwarizmi e Abu-Yusuf Ya’qub ibn Ishaq al-Kindi. Do nome do primeiro, descende a palavra algoritmo, e a suas contribuições para matemática, geografia e astronomia são muitas e importantes. Já o segundo, provavelmente mais conhecido pelo seu trabalho em filosofia (curiosamente sobre a relação entre razão e revelação, devendo em muito a Platão), contribuiu bastante para a análise estatística de textos (algo em que eu trabalho) com aplicações à criptografia. Um trabalho muitíssimo interessante e absolutamente original que, por via muito indirecta, contribuiu para a morte de Maria, Rainha dos escoceses, cujos ajudantes, por desconhecerem o trabalho de al-kindi, usaram um método de criptografia obsoleto (ver The Code Book de Simon Singh).
Já agora, o MacGuffin que gosta tanto de brincar com a irracionalidade do Islâmismo radical (que deve de facto ser apontada) e enaltecer qualquer movimento de Israel, porque não explica a "racionalidade" das cluster bombs lançadas no Líbano? Pelo menos Bento XVI analisa este assunto da razão e a falta dela de vários lados. De facto, eu diria que no seu discurso o maior ataque é feito aos fundamentalistas cristãos e às suas formas literais de perceber a Bíblia.
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