2024-05-31
Anatomia da desinformação convencional: o caso dos protestos nas universidades americanas
Uma preocupação
atual é o putativo perigo das redes sociais para a propagação de desinformação.
São frequentes editoriais e artigos de opinião sobre os perigos da
desinformação no X, TikTok, Facebook, Instagram,
etc. Aliás, este é um receio recorrente sempre que há inovação tecnológica. Nos
anos 90 um dos membros da minha comissão de doutoramento–John Dockery da Defense
Information Systems Agency dos EUA–já me ensinava
sobre estratégias de guerra de informação para os chat rooms do inicio
da Web. Mas como é sabido nessa
área, os casos de desinformação com maior repercussão são propagados pelos
meios de comunicação convencionais. Não é preciso sequer ler as ideias de Chomsky sobre a fabricação de
consentimento para nos
lembramos que jornais de referencia como o New York Times foram a chave da propagação de mentiras sobre
armas de destruição maciça que levaram à guerra do Iraque, ou mesmo na guerra atual em Gaza.
É natural os
políticos e governos fazerem o enquadramento dos assuntos de forma a canalizar
a opinião da população para os seus interesses. Mas quando os meios de
comunicação o fazem sem base factual, perdem legitimidade enquanto um quarto
poder independente, reduzindo-se a agentes de propaganda do poder oficial.
Infelizmente esse enquadramento é mais a norma, do que a exceção. Por exemplo,
a análise de texto das reportagens dos meios de comunicação tradicionais sobre
o conflito Israelo-árabe ao longo dos anos mostra um enviesamento nítido contra
Palestinos–algo já demonstrado também para os principais
jornais americanos na atual guerra em Gaza, sabendo-se até que no New York Times há diretivas dos
editores para instruir os jornalistas no enquadramento desejado.
A situação no
jornalismo português fica ainda pior dada a facilidade de propagar noticias do
estrangeiro sem confirmação direta das fontes. A tecnologia atual possibilita a
receção, tradução e reprodução rápida de ideias (e até plágio de artigos) pré-fabricadas pelos principais canais de
noticias internacionais (AP, Reuters, New York Times, Fox,
the Guardian, etc.) Sendo eu emigrante nos EUA há muito tempo, observo
também uma certa arrogância tipicamente portuguesa de fingir (ou, pior, mesmo
acreditar) que se conhece intimamente a realidade política de outros países –
especialmente dos EUA – lendo esses canais à distância. Dados os recursos
limitados do jornalismo convencional nacional, a tentação de passar noticias
desses canais sem comprovar a fonte será forte.
Mas este jornalismo, qual retransmissor em rede, é potencialmente mais
nocivo na transmissão de desinformação do que as redes sociais, porque parte da
autoridade ainda reconhecida aos média convencionais.
Um caso que me tocou pessoalmente foi a cobertura dos protestos nas universidades americanas contra a guerra em Gaza. Como professor numa das universidades onde tem havido protestos e tratando-se do sistema académico americano que integro há mais de 30 anos, foi deveras frustrante ver a retransmissão de desinformação sobre o assunto em Portugal. Fui vendo os alunos das nossas universidades retratados como uma elite radical, preocupando-se caprichosamente com uma guerra distante. Uma imagem em nada semelhante aos meus alunos (nos protestos ou não) que admiro tanto–a composição das minhas aulas tipicamente tem proporção semelhante de cristãos, judeus e muçulmanos, um pouco menor de hindus, budistas e outros.
Um exemplo (não
exclusivo) por Teresa de Sousa no Publico: “No país mais rico do mundo, nas melhores
universidades do mundo, onde os estudantes pagam as mais elevadas propinas do
mundo, os
jovens que as frequentam gritam (alguns) ‘morte à América.” Apesar de ser natural em qualquer protesto
que “alguns” dissessem barbaridades, especialmente porque é comum protestos serem infiltrados por agitadores para os desacreditar e atacar, esta é comprovadamente uma notícia falsa. Com origem na Fox News (a rede de
desinformação convencional de Rupert Murdoch), foi depois amplificada pelo
humorista Bill Maher da HBO e pelo Atlantic, e daí foi um
passinho até ao jornal Público num artigo com titulo e temática muito semelhante. O problema é que o enquadramento falso dos
alunos como elitistas radicais fica assim lançado na discussão do assunto em
Portugal com a autoridade de um jornal importante, o que é bem pior do que se
fosse feito por um cidadão comum nas redes sociais.
O enquadramento
dos protestos baseou-se noutras narrativas falsas, algumas das quais projetadas
da realidade portuguesa para a americana. Por exemplo, a noção que os alunos
que protestavam em 1968 tinham maior legitimidade porque não queriam ir para a
guerra do Vietname esquece vários factos importantes: os alunos universitários
em 1968 estavam isentos da recruta, 2/3 dos soldados americanos nessa guerra
eram voluntários, nas zonas de combate só 25% dos soldados eram da recruta e só 8% da população de rapazes elegíveis
foi recrutada para essa guerra. Em contrapartida, em 2024, 13.4% dos homens americanos já serviu nas
forças armadas americanas que nas últimas décadas têm estado praticamente sempre envolvidas em
guerras no Médio Oriente. Nas minhas aulas tenho frequentemente veteranos (feridos
física e emocionalmente) dessas guerras, na sua maioria começadas sobre
premissas falsas fabricadas com ajuda dos média convencionais.
Além do
envolvimento direto, ou de amigos e familiares, nessas guerras sem sentido,
todos os Americanos estão envolvidos na guerra em Gaza. A Palestina não está
distante quando é bombardeada com armas pagas pelo seu país. Israel é o maior recipiente de fundos dos EUA —só
este ano foram aprovados 14 mil milhões acima dos
habituais 4 mil milhões anuais. Portanto, o que acontece em Gaza é da absoluta responsabilidade do
contribuinte americano–isto quando em 1970 um jovem americano conseguia pagar as
propinas trabalhando poucas horas semanais a salário mínimo, mas hoje precisaria de trabalhar 100 horas por
semana para pagar uma universidade privada. É precisamente por causa do dinheiro investido
em seu nome que os alunos protestam (impostos, propinas e património
universitário). Em democracia não é capricho exigir que o dinheiro de todos
seja investido de acordo com os seus valores, o que explica também porquê os
protestos não se focam tanto no Sudão ou na libertação dos reféns do Hamas, uma
vez que não é neles que as universidades ou o governo americano investem, é no
exército de Israel. Mas mesmo isso é
mais um exemplo de desinformação sobre estes protestos: “Os estudantes americanos não reivindicam a
libertação dos reféns que ainda estarão com vida nas mãos do Hamas.” Os protestos da universidade de
Columbia (os primeiros) são organizados por uma coligação de 116 grupos com visões distintas. Mas um dos grupos centrais,
o primeiro que Columbia suspendeu, é o Jewish Voice for Peace que desde
Outubro exige a libertação de todos os reféns. Quase todos os protestos noutras universidades o fizeram também—incluindo os da minha universidade.
No final das contas, o enquadramento destes protestos usa desinformação para ofuscar o facto que os protestos de alunos americanos têm sempre estado do lado certo da história—é isso que assusta o poder e a sua geração. Alguém acha hoje que a guerra do Vietname foi uma boa ideia? Mais, os protestos estudantis foram fundamentais para acabar com a segregação racial—o Senador Bernie Sanders foi preso na Universidade de Chicago em 1963 nessa luta que todos hoje celebram mas na altura, mesmo Kennedy achava agressiva demais. Foram também os protestos de alunos nos anos 80 que levaram a universidade de Columbia a ser a primeira a desinvestir do regime de apartheid na Africa do Sul, numa cadeia de eventos que culminou com o Congresso norte-americano a impor sanções que acabaram com esse regime, nulificando o veto de Reagan que, tal como Thatcher, dizia ainda em 1985 que Nelson Mandela era um terrorista.
Tal como nesses momentos de protesto, é provável que estejamos realmente numa encruzilhada da História em que são os alunos a mostrar o caminho da decência. Nesta circunstância, mais do que nunca, o jornalismo convencional não deveria servir apenas a reação do poder assustado com os desejos da geração mais bem informada de sempre–com acesso à inteligência coletiva possibilitada pela Internet. Se os média convencionais não quiserem desaparecer perdendo para sempre a nova geração, têm de funcionar como um quarto poder legítimo, e não como mecanismo de propagação da propaganda do poder vigente–isso podem fazer a Internet e a inteligência artificial facilmente sem eles.
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