2025-01-07

 

Migrante pluripatriótico na nova era do nacionalismo

Preprint original de artigo que saiu no Publico no dia 2 de Janeiro de 2025.

Um dos dias mais felizes da minha vida foi quando me tornei cidadão dos Estados Unidos da América (EUA).  Tal sentimento foi uma grande surpresa para mim. Durante mais de vinte anos como residente legal, tinha hesitado dar esse passo por sentir que a dupla nacionalidade seria também uma dupla traição. Não sabia como combinar as partes de mim que uma conceção simplista do que é um estado me dizia serem incompatíveis.  Felizmente, a Juíza de Indianápolis que me acrescentou a cidadania americana libertou-me desses receios. Com um belo discurso de acolhimento, pediu aos vários novos cidadãos americanos que nunca deixassem a sua cultura e língua nativa para trás, mas antes que as usassem para enriquecer os EUA, honrando assim a sua promessa de liberdade e diversidade. Deu-nos uma conceção de patriotismo americano não só compatível, mas sinérgico e solidário com patriotismo por outras origens. Desde então, sem qualquer complexo, na secretária do meu gabinete está a pequena bandeira americana que me foi dada nesse dia, entrelaçada com uma bandeira portuguesa igual.

Agora que as forças do nacionalismo se levantam novamente nos dois lados Atlântico para atear o medo dos imigrantes e da sua influência nos nossos estados, é importante perceber a diferença entre nacionalismo e patriotismo e como levam a conceções de identidade individual e nacional muito diferentes. George Orwell fê-lo de forma brilhante, no que deveria ser um texto fundamental em qualquer educação. O patriotismo é a casa e família cultural de cada um, pelas quais sentimos muito orgulho. É um sentimento de devoção fortíssimo, mas defensivo; algo que temos toda a motivação para defender, mas não forçar a outros.  O nacionalismo é uma forma agressiva, separatista e bélica de patriotismo. Apesar de serem frequentemente considerados sinónimos, é perigoso confundi-los. Um patriotismo sincero facilmente dá legitimidade ao nacionalismo, que é a doença crónica pela qual a Europa se autodestrói ciclicamente. O nacionalismo implica superioridade e belicismo contra “o outro”, atacando a diversidade e liberdade que estimulam o conhecimento, criatividade, economia e adaptabilidade, o que acelera a decadência e mesmo autodestruição das nações que supostamente se quer defender.

Subjacente a esta confusão é a ideia de estado-nação que a nossa educação nos leva a ver como a condição natural das coisas. Isto é, a ideia de que cada país está associado a uma única naçãoum grupo de pessoas unidas por uma ascendência, história e cultura comuns. Mas a organização de países em estados-nação é recente. Até ao século XVIII, reinos e impérios eram tipicamente multiétnicos, multilinguísticos e multirreligiosos. Nesses estados os soldados eram pagos pela nobreza, estavam a soldo. Mas a revolução francesamais ainda a vontade imperialista de Napoleãoinventou a recruta: soldados obrigados a lutar sem ser a soldo. Para isso foi necessário incutir na população o conceito de uma única nação por país. Inventaram-se mitologias para se conseguir que pessoas de nações e línguas diferentes estivessem dispostas a lutar de graça por um estado-nação único, frequentemente indo buscar nomenclaturas do império romano para as legitimar – sendo a mitologia belga dos Belgae paradigmática, mas mesmo no contexto mais nacionalmente homogéneo de Portugal desenvolveu-se a mitologia dos Lusitanos. Mas mais destrutivo da diversidade natural da europa foram as políticas de destruição de qualquer patriotismo por nações originais, tentando substituí-lo por nacionalismo pela nação dominante ou mesmo eliminando nações indesejáveis. 

Um caso que me tocou pessoalmente foi a cobertura dos protestos nas universidades americanas contra a guerra em Gaza.  Como professor numa das universidades onde tem havido protestos e tratando-se do sistema académico americano que integro há mais de 30 anos, foi deveras frustrante ver a retransmissão de desinformação sobre o assunto em Portugal.  Fui vendo os alunos das nossas universidades retratados como uma elite radical, preocupando-se caprichosamente com uma guerra distante. Uma imagem em nada semelhante aos meus alunos (nos protestos ou não) que admiro tantoa composição das minhas aulas tipicamente tem proporção semelhante de cristãos, judeus e muçulmanos, um pouco menor de hindus, budistas e outros.

Na realidade, a ideia de estado-nação raramente funciona a longo prazo a não ser em sociedades muito homogéneas. Pode até funcionar numa Noruega ou Japão ou em Portugal (após várias purgas étnicas na história), mas não funciona em Espanha ou na Bélgica em que nem a língua dá para unificar nem sequer nas ilhas britânicas e muito menos em imensas zonas do Médio-Oriente, África e Ásia. Em qualquer contexto nacionalmente diverso, estruturas supranacionais são necessárias, quer sejam impérios (Romano, Otomano, Chinês) ou federações (UE, EUA).  Crucialmente, o patriotismo é perfeitamente compatível e sinérgico com estruturas supranacionais, mas o nacionalismo não. Um basco, catalão, escocês ou flamengo poderia mais facilmente ser patriótico, sem ser nacionalista, numa organização supranacional em que não fosse obrigado a fazer parte de um estado de nação única – por exemplo, numa hipotética união europeia de cidadãos de diversas nações, mas não de estados-nação. 



O nacionalismo é, em última análise, um apartheid mental. Um exemplo dramático é a situação da Palestina em que a entrada do nacionalismo (tanto o sionismo como o nacionalismo árabe) arruinou a coexistência entre diversas nações que existia enquanto a região foi administrada pelo império Otomano, que era afinal uma estrutura supranacional. A incapacidade do Mundo em chegar a uma solução de dois estados na Palestina mostra quão difícil é forçar o conceito de estado-nação a uma região que nunca foi de residentes de uma única naçãonem no período bíblico. Gaza, como muitas cidades do Mediterrâneo, já existia antes de Moisés sair do Egipto, tendo passado por domínio canaanita, filisteu, micénico, babilónio, assírio, egípcio, persa, helénico, etc.  A criação de um estado supranacional pós-imperial na Palestina poderia ter dado espaço simultaneamente a patriotismo judaico e árabe, e daí a segurança mútua. Mas o pensamento nacionalista requer exclusividade; é tudo nosso, ou, na melhor das hipóteses, cada um no seu galho, mas o nosso por cima do vosso. É revelador que a frase “do rio até ao mar” no contexto da Palestina não é polémica para a mente patriótica; é antes uma aspiração, provavelmente utópica. Em contraste, para a mente nacionalista a mesma frase é sentida como uma ameaça mortal ou desejo de limpeza étnica, dependendo do lado que a diz ou ouve.

A riqueza, segurança, paz e sucesso de países dependem precisamente da diversidade cultural (e até genética) que estruturas supranacionais otimizam. Voltando ao início, o melhor dos EUA está na atitude patriótica da Juíza que me acrescentou a nacionalidade americana. É esse pluripatriotismo aberto, compatível com “o outro”, que lá cria enorme riqueza, conhecimento, tecnologia e avanço social – os imigrantes são um componente fulcral desde as empresas tecnológicas até às universidades e cultura. O Pior dos EUA é quando o nacionalismo se levanta. Quando os seus líderes pensam o país como uma nação maioritariamente branca e anglófona que é diferente, especial, e superior às outras. Aí aparece o destino manifesto do genocídio aos nativos, a escravatura e, mais recentemente, os neoconservadores a tentar moldar o Médio Oriente à força, ou as barreiras que o movimento nacionalista de Trump quer criar, para manter a identidade nacional branca e anglófona que pensa ameaçada.  

Quando o nacionalismo domina qualquer país, mais tarde ou mais cedo torna-o expansionista, bélico, fechado a outros e, em última análise, decadente. Todos os imigrantes são, como eu, emigrantes de algum lugar riquíssimo em história e conhecimento acumulados em cultura e até nos genes. A sua presença não é motivo para recear nenhuma “diluição da nação”. Pelo contrário, é um motor de cruzamento para a evolução de estados pluripatrióticos, livres, resilientes e saudáveis.


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2018-12-12

 

Orwell, Nationalism and Film

I have always been (deeply and seriously) patriotic for several places and ways of living---Portugal, USA, Portuguese-speaking World, English-speaking World, even patriotic for Disco and Punk---but I have never been a nationalist for anything. Indeed, I have always been fiercely anti-nationalist in the ways so eloquently expressed by George Orwell (whom I only consider marginally second to Graham Greene and Fernando Pessoa):

"By ‘nationalism’ I mean first of all the habit of assuming that human beings can be classified like insects and that whole blocks of millions or tens of millions of people can be confidently labelled ‘good’ or ‘bad’(1). But secondly — and this is much more important — I mean the habit of identifying oneself with a single nation or other unit, placing it beyond good and evil and recognising no other duty than that of advancing its interests. Nationalism is not to be confused with patriotism. Both words are normally used in so vague a way that any definition is liable to be challenged, but one must draw a distinction between them, since two different and even opposing ideas are involved. By ‘patriotism’ I mean devotion to a particular place and a particular way of life, which one believes to be the best in the world but has no wish to force on other people. Patriotism is of its nature defensive, both militarily and culturally. Nationalism, on the other hand, is inseparable from the desire for power. The abiding purpose of every nationalist is to secure more power and more prestige, not for himself but for the nation or other unit in which he has chosen to sink his own individuality."


The recent excellent (doubleplusgood) article by Kanishk Tharoor is a fantastic piece on nationalism in film from a similar viewpoint, but emphasizing the historical errors that the nationalist lens imposes when we look back at pre-nationalist human experience:

"It is a pity that so many historical films feel so obliged to place the imagined nation at their emotional core. That not only distorts understandings of the past, but it suggests that the past can only be relevant and interesting if it supports conventions of the present."


Ultimately, Orwell's 1984 was about the end of history, when historical facts are easily re-written to adapt to the present circumstances. Fake news are not a modern invention. Doubleplusungood. Which allows me to plug in also one of my favorite songs (and albums) from the Eurythmics' 1984 soundtrack.






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