2025-01-07

 

Migrante pluripatriótico na nova era do nacionalismo

Preprint original de artigo que saiu no Publico no dia 2 de Janeiro de 2025.

Um dos dias mais felizes da minha vida foi quando me tornei cidadão dos Estados Unidos da América (EUA).  Tal sentimento foi uma grande surpresa para mim. Durante mais de vinte anos como residente legal, tinha hesitado dar esse passo por sentir que a dupla nacionalidade seria também uma dupla traição. Não sabia como combinar as partes de mim que uma conceção simplista do que é um estado me dizia serem incompatíveis.  Felizmente, a Juíza de Indianápolis que me acrescentou a cidadania americana libertou-me desses receios. Com um belo discurso de acolhimento, pediu aos vários novos cidadãos americanos que nunca deixassem a sua cultura e língua nativa para trás, mas antes que as usassem para enriquecer os EUA, honrando assim a sua promessa de liberdade e diversidade. Deu-nos uma conceção de patriotismo americano não só compatível, mas sinérgico e solidário com patriotismo por outras origens. Desde então, sem qualquer complexo, na secretária do meu gabinete está a pequena bandeira americana que me foi dada nesse dia, entrelaçada com uma bandeira portuguesa igual.

Agora que as forças do nacionalismo se levantam novamente nos dois lados Atlântico para atear o medo dos imigrantes e da sua influência nos nossos estados, é importante perceber a diferença entre nacionalismo e patriotismo e como levam a conceções de identidade individual e nacional muito diferentes. George Orwell fê-lo de forma brilhante, no que deveria ser um texto fundamental em qualquer educação. O patriotismo é a casa e família cultural de cada um, pelas quais sentimos muito orgulho. É um sentimento de devoção fortíssimo, mas defensivo; algo que temos toda a motivação para defender, mas não forçar a outros.  O nacionalismo é uma forma agressiva, separatista e bélica de patriotismo. Apesar de serem frequentemente considerados sinónimos, é perigoso confundi-los. Um patriotismo sincero facilmente dá legitimidade ao nacionalismo, que é a doença crónica pela qual a Europa se autodestrói ciclicamente. O nacionalismo implica superioridade e belicismo contra “o outro”, atacando a diversidade e liberdade que estimulam o conhecimento, criatividade, economia e adaptabilidade, o que acelera a decadência e mesmo autodestruição das nações que supostamente se quer defender.

Subjacente a esta confusão é a ideia de estado-nação que a nossa educação nos leva a ver como a condição natural das coisas. Isto é, a ideia de que cada país está associado a uma única naçãoum grupo de pessoas unidas por uma ascendência, história e cultura comuns. Mas a organização de países em estados-nação é recente. Até ao século XVIII, reinos e impérios eram tipicamente multiétnicos, multilinguísticos e multirreligiosos. Nesses estados os soldados eram pagos pela nobreza, estavam a soldo. Mas a revolução francesamais ainda a vontade imperialista de Napoleãoinventou a recruta: soldados obrigados a lutar sem ser a soldo. Para isso foi necessário incutir na população o conceito de uma única nação por país. Inventaram-se mitologias para se conseguir que pessoas de nações e línguas diferentes estivessem dispostas a lutar de graça por um estado-nação único, frequentemente indo buscar nomenclaturas do império romano para as legitimar – sendo a mitologia belga dos Belgae paradigmática, mas mesmo no contexto mais nacionalmente homogéneo de Portugal desenvolveu-se a mitologia dos Lusitanos. Mas mais destrutivo da diversidade natural da europa foram as políticas de destruição de qualquer patriotismo por nações originais, tentando substituí-lo por nacionalismo pela nação dominante ou mesmo eliminando nações indesejáveis. 

Um caso que me tocou pessoalmente foi a cobertura dos protestos nas universidades americanas contra a guerra em Gaza.  Como professor numa das universidades onde tem havido protestos e tratando-se do sistema académico americano que integro há mais de 30 anos, foi deveras frustrante ver a retransmissão de desinformação sobre o assunto em Portugal.  Fui vendo os alunos das nossas universidades retratados como uma elite radical, preocupando-se caprichosamente com uma guerra distante. Uma imagem em nada semelhante aos meus alunos (nos protestos ou não) que admiro tantoa composição das minhas aulas tipicamente tem proporção semelhante de cristãos, judeus e muçulmanos, um pouco menor de hindus, budistas e outros.

Na realidade, a ideia de estado-nação raramente funciona a longo prazo a não ser em sociedades muito homogéneas. Pode até funcionar numa Noruega ou Japão ou em Portugal (após várias purgas étnicas na história), mas não funciona em Espanha ou na Bélgica em que nem a língua dá para unificar nem sequer nas ilhas britânicas e muito menos em imensas zonas do Médio-Oriente, África e Ásia. Em qualquer contexto nacionalmente diverso, estruturas supranacionais são necessárias, quer sejam impérios (Romano, Otomano, Chinês) ou federações (UE, EUA).  Crucialmente, o patriotismo é perfeitamente compatível e sinérgico com estruturas supranacionais, mas o nacionalismo não. Um basco, catalão, escocês ou flamengo poderia mais facilmente ser patriótico, sem ser nacionalista, numa organização supranacional em que não fosse obrigado a fazer parte de um estado de nação única – por exemplo, numa hipotética união europeia de cidadãos de diversas nações, mas não de estados-nação. 



O nacionalismo é, em última análise, um apartheid mental. Um exemplo dramático é a situação da Palestina em que a entrada do nacionalismo (tanto o sionismo como o nacionalismo árabe) arruinou a coexistência entre diversas nações que existia enquanto a região foi administrada pelo império Otomano, que era afinal uma estrutura supranacional. A incapacidade do Mundo em chegar a uma solução de dois estados na Palestina mostra quão difícil é forçar o conceito de estado-nação a uma região que nunca foi de residentes de uma única naçãonem no período bíblico. Gaza, como muitas cidades do Mediterrâneo, já existia antes de Moisés sair do Egipto, tendo passado por domínio canaanita, filisteu, micénico, babilónio, assírio, egípcio, persa, helénico, etc.  A criação de um estado supranacional pós-imperial na Palestina poderia ter dado espaço simultaneamente a patriotismo judaico e árabe, e daí a segurança mútua. Mas o pensamento nacionalista requer exclusividade; é tudo nosso, ou, na melhor das hipóteses, cada um no seu galho, mas o nosso por cima do vosso. É revelador que a frase “do rio até ao mar” no contexto da Palestina não é polémica para a mente patriótica; é antes uma aspiração, provavelmente utópica. Em contraste, para a mente nacionalista a mesma frase é sentida como uma ameaça mortal ou desejo de limpeza étnica, dependendo do lado que a diz ou ouve.

A riqueza, segurança, paz e sucesso de países dependem precisamente da diversidade cultural (e até genética) que estruturas supranacionais otimizam. Voltando ao início, o melhor dos EUA está na atitude patriótica da Juíza que me acrescentou a nacionalidade americana. É esse pluripatriotismo aberto, compatível com “o outro”, que lá cria enorme riqueza, conhecimento, tecnologia e avanço social – os imigrantes são um componente fulcral desde as empresas tecnológicas até às universidades e cultura. O Pior dos EUA é quando o nacionalismo se levanta. Quando os seus líderes pensam o país como uma nação maioritariamente branca e anglófona que é diferente, especial, e superior às outras. Aí aparece o destino manifesto do genocídio aos nativos, a escravatura e, mais recentemente, os neoconservadores a tentar moldar o Médio Oriente à força, ou as barreiras que o movimento nacionalista de Trump quer criar, para manter a identidade nacional branca e anglófona que pensa ameaçada.  

Quando o nacionalismo domina qualquer país, mais tarde ou mais cedo torna-o expansionista, bélico, fechado a outros e, em última análise, decadente. Todos os imigrantes são, como eu, emigrantes de algum lugar riquíssimo em história e conhecimento acumulados em cultura e até nos genes. A sua presença não é motivo para recear nenhuma “diluição da nação”. Pelo contrário, é um motor de cruzamento para a evolução de estados pluripatrióticos, livres, resilientes e saudáveis.


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2024-02-02

 

Polimedicação é pior em idosos e mulheres, mas pode-se melhorar com análise de dados

Artigo publicado: L.M. Rocha [2024]. Polimedicação é pior em idosos e mulheres, mas pode-se melhorar com análise de dados. Público . January 31, 2024.


Alexandra Campos publicou recentemente no Público uma reportagem muito interessante sobe o problema da polimedicação em Portugal. Ficámos a saber que mais de um terço da população acima dos 65 anos toma mais de cinco medicamentos simultaneamenteo que remete Portugal para o topo dos países com este problema na Europa (só atrás da Republica Checa e Israel que também participou neste estudo europeu).

Um dos grandes problemas da polimedicação é que os medicamentos são muitas vezes receitados por médicos de especialidades e até de sistemas de saúde diferentes, que não recebem alertas sobre outros medicamentos já receitados ao mesmo paciente. Além disso, frequentemente os médicos não estão cientes das muitas interações nocivas entre os vários medicamentos que são conhecidas, estabelecidas cientificamente e publicadas em bases de dados públicasnão se trata sequer de potenciais interações desconhecidas que obviamente não podem ser usadas como alertas, mas cujo risco aumenta com polimedicação.

O nosso grupo de investigação tem-se especializado em analisar o problema das interações nocivas na polimedicação, com projetos patrocinados nos últimos 10 anos pelos National Institutes of Health nos EUA e também a nível nacional pela Fundação para a Ciencia e Tecnologia (FCT). Para perceber a escala do problema das interações medicamentosas, avaliámos os cuidados primários em populações distintas de três continentes: 133 mil pacientes da cidade de Blumenau no Brasil (Estado de Santa Catarina), 5,5 milhões de pacientes na Catalunha e 250 mil pacientes do maior sistema de saúde privado da cidade de Indianápolis nos EUA (Estado de Indiana). Apesar de diferenças entre os vários sistemas de saúde–por exemplo, o formulário do sistema publico de Blumenau só inclui 140 medicamentos enquanto o sistema privado de Indianápolis inclui mais de mil–, ficou bem claro que em todos estes sistemas as mulheres têm bastante maior risco de lhes serem receitadas interações conhecidas, algumas muito nocivas.

Em relação a idosos, o problema é ainda bem maior do que descrito na reportagem do Público. De facto, o nosso último estudo (ainda em avaliação em revista científica) mostra que se os médicos prescrevessem medicamentos aleatoriamente nas mesmas proporções, seriam receitadas menos interações medicamentosas prejudiciais do que os números reais. Isto é, os idosos (de ambos os sexos mas pior para mulheres) estão potencialmente mais expostos às complicações da polimedicação do que se fossem tirar medicamentos das prateleiras ao calhas!

Uma vez que Portugal tem maior proporção da sua população em polimedicação do que Espanha, este problema deve ser ainda maior por cá, só que não sabemos por não haver disponibilização desses dados. É importante frisar que a análise desses dados leva à descoberta e recomendação de ações especificas que podem melhorar a saúde e reduzir os custos de saúde publica. No nosso estudo, descobrimos que se o sistema de saúde catalão substituir um único medicamento (Omeprazole, inibidor da bomba de protões para tratamento de refluxo gástrico) por outros medicamentos semelhantes, o risco de ser receitada uma interação na polimedicação nesta população reduz-se em 23% para mulheres e 20% para homens, reduzindo significativamente também a diferença entre sexos neste problemacom a substituição de um único medicamento!

A recomendação dessa ou de outras substituições poderia ser facilmente implementada com a introdução de um sistema de alerta robusto, na prescrição, nas farmácias ou no acompanhamento de cada paciente. Além de melhorar a saúde dos pacientes, o que deve ser o principal objetivo ético, a redução dos problemas inerentes à polimedicação especialmente numa população envelhecida pode certamente levar também à redução de custos. Uma estimativa conservadora que fizemos da hospitalização por interações medicamentosas, conclui que os seus custos no estado brasileiro de Santa Catarina (população 7 milhões bem mais jovem que a de Portugal e com menos medicamentos disponíveis) ascendem a entre 21 a 61 milhões de dólares americanos por cada 18 meses .

Contruir alertas para possíveis interações ou reações adversas em polimedicação não só é relativamente fácil de fazer, como imensos sistemas de saúde os têm.  Uma vez que existe um sistema nacional de códigos de prescrição, é também possível fazer um sistema nacional de alertas integrativo para médicos no ato da prescrição, farmácias no ato da venda ou no acompanhamento de pacientes por gestores de saúde publica. No caso das interações e reações mais perigosas conhecidas, uma receita deveria acionar um alerta para que o médico confirme a necessidade de prescrever um medicamento que se sabe causar potenciais problemas graves na presença de outros já prescritos ao mesmo paciente (de que o médico pode nem estar ciente), bem como a recomendação automática de alternativas. Também o próprio paciente deveria receber alertas, já que os folhetos informativos de cada medicamento são normalmente de difícil compreensão.  Preocupamo-nos muito com a privacidade dos dados, mas pouco com a ética de se prescrever polimedicação sem informar pacientes de potenciais problemas associados.

Em Portugal, mesmo contactando as entidades responsáveis ao abrigo de projetos da FCT especificamente desenhados para se utilizar a ciência de dados e a inteligência artificial na administração pública, é muito difícil obter dados de prescrição médica para investigação científica. De facto, é muito difícil saber qual a verdadeira escala deste problema, muito menos implementar mecanismos para melhorar os resultados e custos de saúde associadosao contrário da Catalunha e Dinamarca que disponibilizam estes dados sobre toda a sua população durante décadas. Seguindo esses exemplos excelentes (que utilizam todas as normas europeias de privacidade e segurança) na utilização de dados ao serviço do bem-estar da população, está mais do que na hora de se levar a sério o problema da polimedicação, disponibilizando os dados de prescrição nacionais com vista à implementação de ações especificas para melhor servir a saúde publica nacional.


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2021-01-20

 

Lixívia ideológica não resolve a pandemia

Publicado em Público, 20 de Janeiro de 2021

Quando a pandemia chegou em força notou-se um novo apreço na sociedade em geral pela matemática e ciência. Infelizmente esse apreço foi uma oportunidade perdida para integrar cientistas mais seriamente na decisão política. Aliás, nem se quer os média mudaram muito nesse aspeto. Fala-se muito na vantagem de haver diversidade de pensamento, mas quantos comentadores com formação científica vêm nos programas e páginas de opinião na televisão e jornais de referência? Não defendo a inclusão de mais pensamento científico na governação e discussão pública para autopromoção. A questão é que estes poderes fundamentais da democracia ignoram as recomendações científicas em detrimento de posições ideológicas.

O governo e presidente—com o apoio da maioria dos comentadores e editoriais nos média e de quase todos os partidos—têm ido sistematicamente e sucessivamente contra as recomendações dos seus próprios cientistas. Olhando só para os últimos meses: 1) em vez de confinar em Novembro para poder relaxar mais no Natal como outros países fizeram, o governo optou por relaxar no Natal e Ano Novo mesmo com um numero de casos diários por milhão quase cinco vezes maior do que no pico de Março/Abril; 2) depois deste relaxamento que se saberia ir aumentar a transmissão comunitária, o governo abriu imediatamente as escolas e locais de trabalho no inicio de Janeiro esperando 10 dias para reunir com o Infarmed; 3) vendo o resultado péssimo das duas decisões anteriores, o governo apostou a dobrar num confinamento light com escolas abertas, contra a recomendação científica de fechar escolas para os alunos com mais de 12 anossabendo de novas variantes aparentemente capazes de maior propagação em jovens. Pois aí está a realidade: hoje Portugal é o país europeu com maior numero de casos por milhão de habitantesmesmo com o aparente teto falso devido à limitada capacidade de testagem!

É importante notar que estas decisões políticas contra as recomendações científicas têm sido amplamente defendidas pela intelligentsia nacional. Já nem falo da ridícula e nociva obsessão com o “modelo Sueco” há muito desacreditado pela ciência e até pelo próprio Rei e governo suecouma obsessão tanto da esquerda como da direita que, não se percebendo porquê, parecem focar-se na Suécia em vez dos países democráticos da Ásia-Pacífico que melhor responderam à pandemia. Mas o caso de se manterem todas as escolas abertas na conjuntura atual é particularmente ilustrativo. O consenso científico é claro: com o que se sabe do SARS-CoV-2 e suas variantes, quando a transmissão local é elevada como é o caso Português, deve-se fechar as escolas exceto para crianças mais novas. Foi essa a recomendação dada ao governo pelos seus próprios cientistas.

Mas o governo optou por uma opção política de manter abertas todas as escolas, incluindo universidades. Um opção amplamente defendida pela generalidade dos comentadores. Os fundamentos apresentados são essencialmente ideológicos sobre o papel da escola pública na sociedade. Fora do contexto da pandemia, concordo completamente com essas considerações ideológicas para evitar lacunas na aprendizagem que agravam a desigualdade e custos futuros para os jovens. Mas a realidade é a que temos, não a que gostaríamos de ter. Lutar contra ela com argumentos ideológicos é algo como lutar contra a lei da gravidade porque se acha que todos devem ter o direito de voar como os pássaros. Lembra-me quão nocivo foi Trofim Lysenko na União Soviética e China por achar que era a biologia que se devia vergar ao conceito estalinista e maoista de que os seres vivos podem ser infinitamente transformados pela reeducação. Descobriu-se, com milhões a morrer de fome, que não se “educa” bananas a crescer na Sibéria. Aqui descobre-se que nem tampouco vai o SARS-CoV-2 (e variantes) respeitar princípios da escola pública, fronteira aberta, etc. Aliás, o descontrolo epidemiológico só aumenta a probabilidade de o vírus evoluir para estirpes não controladas pelas vacinas, o que seria a maneira mais sinistra da realidade se rir no fimreality bites, diz-se em Inglês.

É importante também perceber que o governo e demais intelligentsia argumentam com falsidades a decisão de manter todas as escolas abertas. Afirmam que não há transmissão nas escolas, mas ao mesmo tempo assumem que não se sabe a origem de 87% dos contágios e o ministério da educação não publica os dados de infeções nas escolas. Ao contrário de Portugal, a maioria dos países europeus fechou as escolas, primeiro porque os dados mostram que transmissão ocorre nas escolas em idades mais avançadas e segundo porque ter as escolas abertas obriga a uma movimentação de grande parte da sociedade que mais transmite o vírus. Mas a arrogância algo provinciana do governo e defensores é ter fé que a natureza e sociedade se comportarão de maneira diferente em Portugal.

Naturalmente que passar as aulas para um regime online tem custos. Mas o custo de as manter abertas não é só um inaceitável número de mortes. Há também um impacto na própria economia por termos agora em mãos uma situação de rotura que só tornará ainda pior todas as desigualdades que os proponentes de se manterem as escolas abertas queriam evitar. É importante dizer-se que o Ministério da Educação teve a primavera, verão e grande parte do outono para preparar o sistema educacional Português para esta vaga de inverno que se sabia que viria. Deveria ter identificado as formas de minimizar as desigualdades inerentes ao ensino online, nomeadamente providenciando recursos informáticos a quem precisa, treinando o corpo docente, ou mesmo estabelecendo regimes heterogéneos de aprendizagem (alguns na escola outros em casa). Esta falta de flexibilidade e incompetência é agora ofuscada por um posicionamento de superioridade ideológica em relação a outros países que fecharam as escolas. Mas não há nenhuma razão para que o ensino online não tenha sido melhorado para colmatar muitos dos problemas observados no primeiro confinamento geral.

No final das contas, a não integração do conhecimento científico na governação e discussão pública sai caro demais. É um posicionamento anticientífico não assumido. Em última análise e na prática, não acatar as recomendações científicas (como fechar as escolas a partir dos 12 anos) não é diferente de recomendar injeções de lixívia, homeopatia, ou mesmo ser anti vacina. Só que o governo português nem com um dos resultados piores da Europa recebe dos média a crítica que compete a um quarto poder; antes pelo contrário, a intelligentsia aprova. A pandemia demonstra mais uma vez que se pode ignorar, mas não fugir da realidadee quanto mais se ignora, menos se consegue fugir.


 

Figura 1: Mortes diárias por milhão de habitantes (média a 7 dias). Curvas de alguns países com notoriedade a ignorar o consenso científico (EUA, Brasil, Suécia, Portugal) versus a média da EU e os países que melhor responderam à pandemia.

 

Figura 3:Mortes por casos de COVID-19 por milhão de habitantes. Eixo vertical (mortes por milhão) em escala logarítmica; Taiwan com 0.3 mortes por milhão de habitantes, Portugal com 870 e Bélgica com 1756 mortes por milhão de habitantes Eixo Horizontal (casos por milhão) em escala linear; Taiwan 36 casos por milhão, Portugal com 54000 e República Checa com 83000 casos por milhão de habitantes.





 

 

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2018-05-05

 

Clubismo na Ciência e as paredes disciplinares

Seria interessante um update da parte de quem escreveu o "Livro Negro da Avaliação Científica em Portugal" em 2015, debruçando-se agora com o que está a acontecer na FCT e na ciência em geral em Portugal. Nunca o sistema de avaliação da FCT foi tão anacrónico, nomeadamente por não permitir de todo o desenvolvimento de projetos interdisciplinares. A FCT ainda faz calls for proposals "em todos os domínios científicos", seguidos de painéis sub-sub-sub disciplinares. Isto é, um reducionismo disciplinar absurdo e incompatível com a Ciência atual. Qualquer pessoa que tente submeter algo minimamente interdisciplinar, está destinado ao fracasso logo à partida. A FCT é gerida e pensada como se ainda estivéssemos em 1991. Haja ideias novas por favor. Mas acima de tudo, quem foi tão crítico de gestões científicas anteriores, bem deveria vir agora para a praça publica falar também dos problemas da gestão atual. Se não, voltamos sempre à mesma dinâmica partidária que torna tudo medíocre pelo seu clubismo. A Ciência não pode ser clubista. Tem que ser avaliada ela própria pelo método científico. Gostava de ter acesso aos dados de projetos patrocinados e também das carreiras universitárias. A minha hipótese é que qualquer medição de interdisciplinaridade e consanguinidade académica em Portugal demonstrará uma situação péssima em comparação com as melhores práticas. Temos que fazer as paredes disciplinares (e do privilegio subjacente ao inbreeding académico) cair também em Portugal!


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2018-03-25

 
O Rui Veloso escreveu umas musicas excelentes, mas sempre me pareceu um reacionário com gostos retro e algo rabugento. Desde o seu primeiro álbum que explora sons de décadas anteriores, nunca explorou sons contemporâneos. Agora porquê que um gajo de Portugal pode explorar o som americano negro dos blues mas um grego não deve expressar a sua criatividade com o som americano negro do hip hop, é uma questão bem explicada aqui pelos Karetus. Bitch don't kill my vibe. Entretanto, vou colocar o seu greatest hits bem juntinho ao greatest hits do festival da canção na minha coleção de CDs.

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2017-11-02

 

Ilustres Professores

Não, não se trata de falar sobre o inbreeding nas universidades Portuguesas, nem tão pouco da falta de interdisciplinaridade na FCT em Portugal, apesar de ambos os problemas serem sérios. Vou falar dos ilustres Professores Portugueses que volta e meia são convidados a integrar as melhores universidades Americanas, para deleite dos media nacionais que os adoram destacar. As escutas do caso Sócrates servem também para desmascarar a "excelência" académica de um destes casos. O diálogo agora publicado entre Manuel Pinho e José Sócrates (ver exerto em baixo) com vista a obterem um lugar convidado na Columbia University é fantástico para se apreciar a profundeza do pensamento de ambos, e também a parte mercenária e subversiva destas universidades de topo. Meus amigos, há anos que ando para dizer isto, mas tenho-me comedido. Este diálogo (ver em baixo) faz-me abdicar de toda a modéstia, mas isto tem que ser dito. Sempre que virem algum fulano que de repente aparece Professor numa universidade Americana de topo, fiquem a saber que sé é Professor convidado, muito provavelmente pagou para lá estar ou vem com custas a cargo de alguma fundação ou benfeitor exterior à universidade. Nenhuma destas "sumidades académicas" aparece como Professor do quadro (tenure-track), que são as verdadeiras posições alcançadas por mérito académico. Para comparação vejam os casos, ambos na Columbia University, de Manuel Pinho (convidadíssimo, "Faculty Affiliates →Visiting Professor") e de um verdadeiro grande cientista Português  ("Faculty and Research → Professor").


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2017-01-16

 

Soares e os retornados, ou como o Branco-de-Segunda dá em Vaca Profana

Desde a morte de Mário Soares que tenho lido vários artigos sobre a opinião que os chamados "retornados" das ex-colónias mantêm dele. Este é dos casos em que parece haver unanimidade da direita à esquerda: os retornados fazem um juízo incorreto e injusto e Soares foi o bode expiatório de uma situação trágica.

Tendo sido um retornado, refugiado da Guerra Civil de Angola, deixem-me dar um contraponto a esta unanimidade de comentário jornalístico; explicar porque sempre me senti uma vaca profana em Portugal nestes assuntos. Primeiro, digo logo à partida que não considero Mário Soares o grande culpado da descolonização---que foi nada, mesmo nada, exemplar. No entanto, como é obvio pelas cerimónias fúnebres da semana passada, ele é o grande símbolo da democracia Portuguesa que engendrou a descolonização após o 25 de Abril. Como tal, é natural que nos seus ombros se deposite simbolicamente tanto os louvores como as mágoas do regime presente e da sua história recente.

Pelo menos desde o século XIX que os Portugueses nas colónias não foram considerados como cidadãos Portugueses autênticos. A opinião destes "brancos-de-segunda" (eu nasci com essa designação que impedia acesso como igual às instituições militares, sociais, económicas e politicas portuguesas) nunca foi fator importante nas decisões dos senhores da grande quinta imperial que mantinha Portugal; eram apenas os trabalhadores dessa quinta. Muito menos contou a opinião da população considerada indígena africana cuja diversidade a Europa e América do século XIX e XX nunca compreenderam---considerando todos como negros e mestiços, nunca percebendo que há muito maior diversidade racial dentro de África do que fora dela.

O grande problema de toda a discussão que se tem em Portugal sobre a descolonização é que ela ainda assenta nesses preceitos e preconceitos colonialistas e racistas. Por exemplo, à esquerda, Daniel Oliveira diz que a descolonização "foi uma decisão que foi coletiva e largamente consensual: da esmagadora maioria dos portugueses que vivia na Metrópole, dos militares e de todos os políticos de então [...] Não seriam as exigências dos portugueses que viviam em África que poderiam prolongar por mais um dia essa guerra [colonial]." Isto é, a ideia de que a opinião (voto?!) dos "brancos-de-segunda" fosse para aqui chamada é inconcebível. À direita temos Henrique Raposo que nos diz também "meu caro amigo [retornado] tem de perceber que 'nem mais um soldado para África' não era um chavão da esquerda, era o sentimento genuíno da população." Isto é, os "brancos-de-segunda," mais uma vez, não são se quer concebidos como fazendo parte da população Portuguesa. A privação da cidadania desse grupo de cidadãos portugueses é ainda hoje internalizada---quero pensar de forma subconsciente---por comentadores Portugueses que respeito bastante tanto da esquerda com da direita! A elite de opinião política aparentemente unanime nunca percebe porque certos grupos se sentem marginalizados; a sua lógica negocia na linguagem do próprio disenfranchisement (privação de direitos) que nunca é repensada. Depois ficam admirados com a suposta falta de lógica daqueles que não se revêm na "unanimidade" de opinião---como no caso de Mário Soares e os retornados.

Mas se o tratamento euro-centrico foi mau para os "brancos-de-segunda," foi ainda muito pior para aqueles que são vistos como Africanos indígenas genuínos---como se brancos, indianos, chineses nascidos em África não o fossem também, ou, ainda pior, como se os "negros" fossem uma massa racial uniforme! Os Europeus formatados pelo nacionalismo dos séculos XIX e XX nunca perceberam a diversidade do continente e os comentadores políticos deste século usam ainda as categorias de pensamento herdadas dessa época. Daniel Oliveira diz "os povos africanos também tinham de se libertar." Quais povos africanos?  A esquerda afinal aceita estados definidos racialmente? Ou só para o caso especial dos "africanos", essa conceção de uma massa escura uniforme herdada do colonialismo do século XIX? Ainda não internalizaram Nelson Mandela ou Albert Camus? Ou os Die Antwoord, Trevor Noah e Charlize Theron?

O que está aqui em causa é que os pensadores da nossa revolução, incluindo Mário Soares, pensaram e construíram a descolonização com preceitos colonialistas e racistas herdados do pior do colonialismo. Só contou a opinião dos brancos da metrópole. Os "brancos-de-segunda" tiveram que aceitar a opinião daqueles, baixando a bolinha como bons  e dóceis trabalhadores da quinta que sempre foram. Quanto a todos aqueles que foram conceptualizados como africanos ("os escurinhos") que se entendessem entre si. Na realidade este laissez-faire Português do inicio da democracia representou um abandono da responsabilidade que Portugal, como governo das regiões africanas do seu império durante 500 anos, obviamente devia a todos os cidadãos da região independentemente da sua cor. Sim, o pai de Henrique Cardoso e os da sua geração queriam naturalmente o fim da guerra colonial, mas a responsabilidade criada durante 500 anos de regência não se esvanece num ano. Os Portugueses fugiram dessa responsabilidade escondendo-se atrás da mudança de regime. Mas essa é a grande hipocrisia do regime atual simbolizado por Mário Soares---aliás esta hipocrisia foi bem visível no seu funeral nos Jerónimos, esse grande símbolo do Império Português. Pois, a democracia chamou para si a grandeza dos símbolos do Império mas negou a responsabilidade que tinha sobre os povos de todas as raças que viviam sob a sua tutela durante 500 anos. Sim, queremos a Praça do Império de Salazar, mas não aceitamos qualquer responsabilidade do que se passou com os que não eram "brancos da metrópole" na altura da revolução. O que nunca se assume sobre esse abandono é que muito para além das misérias que os "retornados" passaram, a fuga das tropas Portuguesas (que de forma eficaz dominaram militarmente o produtivo território até 1974) levou em Angola a uma guerra civil entre povos africanos distintos (Ovimbundus, Ambundus, Bakongos, e outros) em que morreram mais de 500 mil civis, deixando um país corrupto em que a saúde e escolaridade infantil são do pior do Mundo!

Para que não haja dúvidas, não defendo de todo que Portugal se mantivesse como potencia colonial em Africa. Mas o que teria sido exemplar era ter considerado a opinião e o voto de toda a população no Império Português, mantendo-se a ordem por via militar até esse objetivo ser alcançado. 500 anos de domínio exigiam pelo menos uns 5 anitos de transição em que os direitos de cidadania de todos---brancos-de-segunda e indígenas---fossem considerados. A grande vergonha do regime democrático vindo da revolução Portuguesa foi que não garantiu, nem se quer tentou, a democracia para todos os seus cidadãos para além dos brancos da metrópole. As tropas Portuguesas nunca deveriam ter abandonado os territórios sem eleições locais, após exigir o cessar-fogo e desarmamento das fações militares para se atingir a independência. Isso teria sido exemplar.

O tal sistema unanime de opinião nacional mantém que uma transição mais suave não teria sido possível regionalmente. Por exemplo, Daniel Oliveira diz que algo como isto teria sido possível no inicio dos anos 60, mas não em 1975. Mas esse lugar-comum da opinião nacional nunca refere que em 1975 muitos dos vizinhos de Angola e Moçambique (Namibia, Africa do Sul, Zimbabwe/Rodésia) eram ainda colónias ou governados por minorias brancas---Zimbabwe fica independente em 1980, Namibia em 1990, e o Apartheid só cai em 1994! Isto é, havendo vontade política em Lisboa, teria sido possível um processo de descolonização de 5 ou mais anos com dignidade para todos. Se os revolucionários portugueses tivessem respeitado todos os cidadãos do Império, ao invés de olhar para o umbigo de Lisboa, Portugal poderia ter gerido apoio regional e internacional suficiente para uma descolonização diga desse nome, e não uma fuga irresponsável. Ter mantido a ordem militar um pouco mais, teria evitado uma guerra que matou mais de 500 mil civis em Angola---em comparação, a guerra colonial em todos os territórios matou 8 mil pessoas .

Deixo-vos com Die Antwoord, que só são possíveis devidos a um democrata que deve ser verdadeiramente respeitado por pensar em todos, não só no seu umbigo político e regional: Nelson Mandela. Se Soares (ou o sistema que representa) tivesse conseguido uma verdadeira descolonização democrática, a história vê-lo-ia hoje tão grande como Mandela---como o Pai de uma verdadeira democracia pós-racial no Mundo de expressão portuguesa. Mas não foi isso que aconteceu e a História sabe-o.

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2015-10-12

 

Union of European States for Expansionary Austerity

Não deixa de ser interessante a negociação de um governo compromisso feito de componentes muito diversos. É muito comum noutros países europeus...O grande problema é que dentro da zona Euro os governos nacionais não podem ter grande desvio padrão ideológico... Aí estará a parede com que o PS se vai esbarrar muito em breve. As pessoas vão talvez se aperceber em breve que já não há bem democracia nacional, no sentido de haver um leque de alternativas ideológicas possíveis. Eu diria mesmo que estar dentro do Euro é um pouco como estar num regime de partido único tipo a velha USSR: só existe uma alternativa de política económica e financeira, com uma variação mínima aceitável. Estamos na União dos Estados Europeus da Austeridade Expansionária (UESEA*, em Inglês, Union of European States for Expansionary Austerity). Isto é, mesmo as teorias económicas mais baseadas na evidência empírica estão de fora. Keynes not allowed to run for government in the UESEA; taboo, he might as well be Trotsky. Krugman might say, welcome to confidence fairy land. UESEA has always been at war with UESSD....



*Uma versão anterior do post usou um acrónimo mais correcto, mas mais complicado: UESEFC, for Union of European States for Expansionary Fiscal Austerity.

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