2009-04-07
O bem chamado e o despartilhado, or why this town ain't big enough for both of us
Para se viver entre dois continentes é necessário saber sorrir (à maneira de uma criança nua, como na letra de António em cima). Se é verdade que nosso nome só em Portugal é bem chamado, e lá fora deturpado, também é verdade que é em Portugal que a expressão total da nossa identidade é espartilhada. Uma das pessoas que mais admiro pela capacidade de viver nesta identidade em estéreo que é a L(USA)andia é o meu caro Onésimo Teotónio Almeida---ver, por exemplo, Livro-me do Desassossego.
Recentemente, estava eu num jantar em Lisboa, muito agradável especialmente por ter o Onésimo sentado a meu lado, onde estava também uma individualidade política que comentava como o Onésimo tinha já um sotaque americanizado... Quem vive fora como nós recebe frequentemente esse juízo (ou preconceito) quando aterra em Lisboa. Não adianta explicar, como no caso do Onésimo, que o sotaque é na realidade Açoriano, ou que ele o consegue manipular de uma forma absolutamente brilhante (é um prazer ouvi-lo na sua versão Brasileira). Não, em Lisboa há apenas um único sotaque aceitável: o de Lisboa. Tudo o resto é Estrangeiro. Aliás quantas vezes oiço na rádio Portuguesa (na última vez num podcast da Prova Oral) como as pessoas odeiam ler em Português do Brasil ou não gostam do sotaque de Angola ou do Minho. Enfim, é preciso estar fora para perceber que tudo isso são ninharias e que ser Português é muito maior que tudo isso. Ser Português é muito maior do que Lisboa, que sendo uma cidade fantástica ainda gosta de se espartilhar num provincianismo frustrante.
Por falar em identidade estéreo, lembro-me de António Variações, algures entre Nova Iorque e o Minho. Lembro-me também dos Humanos que o adaptaram de uma forma brilhante. Principalmente a justaposição (em baixo) do This Town Ain't Big Enough For Both Of Us dos The Sparks, com O Corpo é que Paga do António. Realmente, nenhuma cidade, nem Lisboa, é suficiente para os dois "eus" de quem vive na L(USA)andia: o bem chamado e o despartilhado. Claro que esta dualidade cultural também tem uma repercussão na dualidade mente-corpo, daí a justaposição dos Humanos ser não só brilhante musicalmente mas também na sua semiótica.
Em baixo também o original dos Sparks—grande banda!
Labels: bilinguism, culture, Music
2008-08-22
Spelling Bees e semiótica do acordo ortográfico
Fico sempre estupefacto com a polémica sobre o acordo ortográfico. Compreendo os vários argumentos, e até acho muito interessante o debate sobre as vantagens de uma ortografia etimológica versus a ortografia fonética. Devo dizer que vejo a linguagem como uma ferramenta--- na tradição de Heidegger muito em voga nas ciências cognitivas modernas (por exemplo o trabalho de Andy Clark). Mais ainda, vejo a linguagem de uma forma geral como um componente essencial de processos evolucionários, mesmo os biológicos (para mais detalhes ver o que tenho escrito sobre isso). Por isso, naturalmente, estou do lado de se manter uma ortografia puramente fonética. É assim que ela é usada pela esmagadora maioria das pessoas.
A componente etimológica é muito interessante para se estudar os processos históricos da semântica, mas aí, a minoria académica que se dedica ao estudo da língua, tem que aceitar que o seu trabalho é mais de cariz filogenético, isto é, semelhante ao trabalho que os biólogos fazem para estudar as relações evolutivas entre genes e as suas funcionalidades em vários organismos na história evolucionária (a semântica do genes). Por isso têm que se dedicar aos “fosseis” literários para estudar a etimologia.
Muitos dos críticos do acordo ortográfico falam muito trivialmente da pragmática das modificações sintáticas que o acordo prevê (vendo a ortografia como uma forma de restrição sintática). Na realidade, é óbvio que existem sérias repercussões cognitivas de haver uma maior ou menor facilidade em assimilar determinada ortografia. Muitas vezes os críticos do acordo levantam o Inglês como um caso de sucesso de expansão global que, no entanto, existe sem acordos e com inúmeras variantes de uma ortografia altamente confusa. Mas o sucesso do Inglês não tem nada a ver com os méritos da sua ortografia (que em geral preserva a etimologia das palavras em detrimento da fonética), mas simplesmente com a hegemonia cultural britânica e americana.
O facto é que a aprendizagem do Inglês, com a sua ortografia caoticamente etimológica, vinda de uma origem simultaneamente latina e germânica, é extremamente difícil. Testes com crianças mostram que a aprendizagem do Inglês leva mais do dobro do tempo do que outras línguas europeias! No meu caso, vejo a dificuldade que o meu filho (agora no segundo ano) passa na escola aqui nos Estados Unidos da América. Os primeiros anos de escolaridade em Inglês utilizam a grande maioria do tempo de aula e trabalhos de casa para lidar com uma ortografia sem regras. Cognitivamente, isto é um enorme desperdício! As palavras têm que ser aprendidas uma a uma, sem a existência de regras. Por isso, só no Mundo Inglês existem concursos de ortografia para crianças (os detestáveis Spelling Bee). Por isso também, em Inglaterra, um terço de adolescentes com 14 anos não consegue ler correctamente. Estou também convencido que o ênfase dado à ortografia no mundo Inglês dificulta a aprendizagem de outras línguas, uma vez que as crianças têm que se dedicar tanto a soletrar nos primeiros anos de escolaridade.
No caso do meu filho, ele fala Português comigo e Inglês com a Mãe. Vai à escola nos Estados Unidos com aulas completamente em Inglês e passa apenas 2 a 3 meses do ano em Portugal. No entanto, de momento, lê livros em Português muito mais facilmente do que em Inglês. Para quem pensa que uma linguagem mais fonética e menos etimológica não trás vantagens, recomendo experimentar criar uma criança bilingue, e depois tentar explicar-lhe que “Fish and Chips”, em Inglês também se poderia escrever “Ghoti and tchogs”—ver artigo do Economist para perceber porquê.
P.S. A esta hora, o meu filho está a fazer o teste semanal de ortografia na escola. Esta semana, as palavras são, entre outros casos, exemplos de palavras em que o som “f” pode aparecer com “ph”, “gh” e “f”, bem como casos em que “ch” pode dar o som “sh” ou “tch” e pode aparecer escrito de várias formas. Reproduzo em baixo as palavras dos teste semanal do meu filho. Alguém ainda quer voltar ao Português anterior à reforma ortográfica de 1911?
1. chart
2. graph
3. phone
4. thick
5. trash
6. hop
7. checkup
8. chef
9. our
10. hill
11. watch
12. sister
13. fun
14. shows
15. photos
A componente etimológica é muito interessante para se estudar os processos históricos da semântica, mas aí, a minoria académica que se dedica ao estudo da língua, tem que aceitar que o seu trabalho é mais de cariz filogenético, isto é, semelhante ao trabalho que os biólogos fazem para estudar as relações evolutivas entre genes e as suas funcionalidades em vários organismos na história evolucionária (a semântica do genes). Por isso têm que se dedicar aos “fosseis” literários para estudar a etimologia.
Muitos dos críticos do acordo ortográfico falam muito trivialmente da pragmática das modificações sintáticas que o acordo prevê (vendo a ortografia como uma forma de restrição sintática). Na realidade, é óbvio que existem sérias repercussões cognitivas de haver uma maior ou menor facilidade em assimilar determinada ortografia. Muitas vezes os críticos do acordo levantam o Inglês como um caso de sucesso de expansão global que, no entanto, existe sem acordos e com inúmeras variantes de uma ortografia altamente confusa. Mas o sucesso do Inglês não tem nada a ver com os méritos da sua ortografia (que em geral preserva a etimologia das palavras em detrimento da fonética), mas simplesmente com a hegemonia cultural britânica e americana.
O facto é que a aprendizagem do Inglês, com a sua ortografia caoticamente etimológica, vinda de uma origem simultaneamente latina e germânica, é extremamente difícil. Testes com crianças mostram que a aprendizagem do Inglês leva mais do dobro do tempo do que outras línguas europeias! No meu caso, vejo a dificuldade que o meu filho (agora no segundo ano) passa na escola aqui nos Estados Unidos da América. Os primeiros anos de escolaridade em Inglês utilizam a grande maioria do tempo de aula e trabalhos de casa para lidar com uma ortografia sem regras. Cognitivamente, isto é um enorme desperdício! As palavras têm que ser aprendidas uma a uma, sem a existência de regras. Por isso, só no Mundo Inglês existem concursos de ortografia para crianças (os detestáveis Spelling Bee). Por isso também, em Inglaterra, um terço de adolescentes com 14 anos não consegue ler correctamente. Estou também convencido que o ênfase dado à ortografia no mundo Inglês dificulta a aprendizagem de outras línguas, uma vez que as crianças têm que se dedicar tanto a soletrar nos primeiros anos de escolaridade.
No caso do meu filho, ele fala Português comigo e Inglês com a Mãe. Vai à escola nos Estados Unidos com aulas completamente em Inglês e passa apenas 2 a 3 meses do ano em Portugal. No entanto, de momento, lê livros em Português muito mais facilmente do que em Inglês. Para quem pensa que uma linguagem mais fonética e menos etimológica não trás vantagens, recomendo experimentar criar uma criança bilingue, e depois tentar explicar-lhe que “Fish and Chips”, em Inglês também se poderia escrever “Ghoti and tchogs”—ver artigo do Economist para perceber porquê.
P.S. A esta hora, o meu filho está a fazer o teste semanal de ortografia na escola. Esta semana, as palavras são, entre outros casos, exemplos de palavras em que o som “f” pode aparecer com “ph”, “gh” e “f”, bem como casos em que “ch” pode dar o som “sh” ou “tch” e pode aparecer escrito de várias formas. Reproduzo em baixo as palavras dos teste semanal do meu filho. Alguém ainda quer voltar ao Português anterior à reforma ortográfica de 1911?
Palavras de Teste de "Spelling" Segundo Ano, Lição 1
1. chart
2. graph
3. phone
4. thick
5. trash
6. hop
7. checkup
8. chef
9. our
10. hill
11. watch
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Labels: bilinguism, linguagem, ortografia