2025-01-07
Migrante pluripatriótico na nova era do nacionalismo
Um dos dias mais
felizes da minha vida foi quando me tornei cidadão dos Estados Unidos da
América (EUA). Tal sentimento foi uma
grande surpresa para mim. Durante mais de vinte anos como residente legal, tinha
hesitado dar esse passo por sentir que a dupla nacionalidade seria também uma dupla
traição. Não sabia como combinar as partes de mim que uma conceção simplista do
que é um estado me dizia serem incompatíveis.
Felizmente, a Juíza de Indianápolis que me acrescentou a cidadania americana
libertou-me desses receios. Com um belo discurso de acolhimento, pediu aos
vários novos cidadãos americanos que nunca deixassem a sua cultura e língua
nativa para trás, mas antes que as usassem para enriquecer os EUA, honrando
assim a sua promessa de liberdade e diversidade. Deu-nos uma conceção de
patriotismo americano não só compatível, mas sinérgico e solidário com
patriotismo por outras origens. Desde então, sem qualquer complexo, na
secretária do meu gabinete está a pequena bandeira americana que me foi dada
nesse dia, entrelaçada com uma bandeira portuguesa igual.
Agora que as
forças do nacionalismo se levantam novamente nos dois lados Atlântico para
atear o medo dos imigrantes e da sua influência nos nossos estados, é
importante perceber a diferença entre nacionalismo e patriotismo e como levam a
conceções de identidade individual e nacional muito diferentes. George Orwell fê-lo de forma brilhante, no que deveria ser um texto fundamental
em qualquer educação. O patriotismo é a casa e família cultural de cada um, pelas
quais sentimos muito orgulho. É um sentimento de devoção fortíssimo, mas
defensivo; algo que temos toda a motivação para defender, mas não forçar a
outros. O nacionalismo é uma forma
agressiva, separatista e bélica de patriotismo. Apesar de serem frequentemente considerados sinónimos, é perigoso confundi-los. Um patriotismo
sincero facilmente dá legitimidade ao nacionalismo, que é a doença crónica pela
qual a Europa se autodestrói ciclicamente. O nacionalismo implica superioridade
e belicismo contra “o outro”, atacando a diversidade e liberdade que estimulam
o conhecimento, criatividade, economia e adaptabilidade, o que acelera a decadência
e mesmo autodestruição das nações que supostamente se quer defender.
Subjacente a esta
confusão é a ideia de estado-nação que a nossa educação nos leva a ver como a condição
natural das coisas. Isto é, a ideia de que cada país está associado a uma única
nação–um grupo de pessoas unidas por uma ascendência, história e cultura comuns. Mas
a organização de países em estados-nação é recente. Até ao século XVIII, reinos
e impérios eram tipicamente multiétnicos, multilinguísticos e multirreligiosos.
Nesses estados os soldados eram pagos pela nobreza, estavam a soldo. Mas a
revolução francesa–mais ainda a vontade imperialista de Napoleão–inventou
a recruta: soldados obrigados a lutar sem ser a soldo. Para isso foi necessário
incutir na população o conceito de uma única nação por país. Inventaram-se
mitologias para se conseguir que pessoas de nações e línguas diferentes
estivessem dispostas a lutar de graça por um estado-nação único, frequentemente
indo buscar nomenclaturas do império romano para as legitimar – sendo a mitologia belga dos Belgae paradigmática, mas mesmo no
contexto mais nacionalmente homogéneo de Portugal desenvolveu-se a mitologia
dos Lusitanos. Mas mais destrutivo da diversidade natural da europa foram as
políticas de destruição de qualquer patriotismo por nações originais, tentando substituí-lo
por nacionalismo pela nação dominante ou mesmo eliminando nações indesejáveis.
Um caso que me tocou pessoalmente foi a cobertura dos protestos nas universidades americanas contra a guerra em Gaza. Como professor numa das universidades onde tem havido protestos e tratando-se do sistema académico americano que integro há mais de 30 anos, foi deveras frustrante ver a retransmissão de desinformação sobre o assunto em Portugal. Fui vendo os alunos das nossas universidades retratados como uma elite radical, preocupando-se caprichosamente com uma guerra distante. Uma imagem em nada semelhante aos meus alunos (nos protestos ou não) que admiro tanto–a composição das minhas aulas tipicamente tem proporção semelhante de cristãos, judeus e muçulmanos, um pouco menor de hindus, budistas e outros.
Na realidade, a
ideia de estado-nação raramente funciona a longo prazo a não ser em sociedades
muito homogéneas. Pode até funcionar numa Noruega ou Japão ou em Portugal (após
várias purgas étnicas na história), mas não funciona em Espanha ou na Bélgica – em
que nem a língua dá para unificar – nem sequer nas ilhas britânicas e muito
menos em imensas zonas do Médio-Oriente, África e Ásia. Em qualquer contexto nacionalmente
diverso, estruturas supranacionais são necessárias, quer sejam impérios (Romano,
Otomano, Chinês) ou federações (UE, EUA). Crucialmente, o patriotismo é perfeitamente
compatível e sinérgico com estruturas supranacionais, mas o nacionalismo não.
Um basco, catalão, escocês ou flamengo poderia mais facilmente ser patriótico,
sem ser nacionalista, numa organização supranacional em que não fosse obrigado
a fazer parte de um estado de nação única – por exemplo, numa
hipotética união europeia de cidadãos de diversas nações, mas não de
estados-nação.
O nacionalismo é,
em última análise, um apartheid mental. Um exemplo dramático é a situação da
Palestina em que a entrada do nacionalismo (tanto o sionismo como o
nacionalismo árabe) arruinou a coexistência entre diversas nações que existia
enquanto a região foi administrada pelo império Otomano, que era afinal uma
estrutura supranacional. A incapacidade do Mundo em chegar a uma solução de
dois estados na Palestina mostra quão difícil é forçar o conceito de
estado-nação a uma região que nunca foi de residentes de uma única nação–nem no
período bíblico. Gaza, como muitas cidades do Mediterrâneo, já existia antes de
Moisés sair do Egipto, tendo passado por domínio canaanita, filisteu, micénico,
babilónio, assírio, egípcio, persa, helénico, etc. A criação de um estado supranacional pós-imperial
na Palestina poderia ter dado espaço simultaneamente a patriotismo judaico e
árabe, e daí a segurança mútua. Mas o pensamento nacionalista requer
exclusividade; é tudo nosso, ou, na melhor das hipóteses, cada um no seu galho,
mas o nosso por cima do vosso. É revelador que a frase “do rio até ao mar” no
contexto da Palestina não é polémica para a mente patriótica; é antes uma
aspiração, provavelmente utópica. Em contraste, para a mente nacionalista a
mesma frase é sentida como uma ameaça mortal ou desejo de limpeza étnica,
dependendo do lado que a diz ou ouve.
A riqueza,
segurança, paz e sucesso de países dependem precisamente da diversidade
cultural (e até genética) que estruturas supranacionais otimizam. Voltando ao
início, o melhor dos EUA está na atitude patriótica da Juíza que me acrescentou
a nacionalidade americana. É esse pluripatriotismo aberto, compatível
com “o outro”, que lá cria enorme riqueza, conhecimento, tecnologia e avanço social
– os imigrantes são um componente fulcral desde as empresas tecnológicas até às
universidades e cultura. O Pior dos EUA é quando o nacionalismo se levanta.
Quando os seus líderes pensam o país como uma nação maioritariamente branca e
anglófona que é diferente, especial, e superior às outras. Aí aparece o destino
manifesto do genocídio aos nativos, a escravatura e, mais recentemente, os neoconservadores
a tentar moldar o Médio Oriente à força, ou as barreiras que o movimento
nacionalista de Trump quer criar, para manter a identidade nacional branca e
anglófona que pensa ameaçada.
Quando o nacionalismo domina qualquer país, mais tarde ou mais cedo torna-o expansionista, bélico, fechado a outros e, em última análise, decadente. Todos os imigrantes são, como eu, emigrantes de algum lugar riquíssimo em história e conhecimento acumulados em cultura e até nos genes. A sua presença não é motivo para recear nenhuma “diluição da nação”. Pelo contrário, é um motor de cruzamento para a evolução de estados pluripatrióticos, livres, resilientes e saudáveis.
Labels: #migration, #Nacionalism, #Patriotism, #politics, #portugal, #USA
2025-01-05
Branqueamento de Biden via Carter: o enquadramento dos neoliberais
Acrescento que Carter apoiou Bernie Sanders quando este era a oposição a Biden em 2020. Em grande contraste com Obama, os Clintons e todo o establishment neocon e neoliberal. Não deixem estes apoderarem-se dos feitos de Carter para branquear o neoliberalismo bélico. Carter estava claramente do lado anti-guerra mais populista da esquerda de Sanders. Nada tem a ver com Biden e companhia.
Labels: #política
2024-12-28
Hey City Zen 2024
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2024-11-24
Unity
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2024-05-31
Anatomia da desinformação convencional: o caso dos protestos nas universidades americanas
Uma preocupação
atual é o putativo perigo das redes sociais para a propagação de desinformação.
São frequentes editoriais e artigos de opinião sobre os perigos da
desinformação no X, TikTok, Facebook, Instagram,
etc. Aliás, este é um receio recorrente sempre que há inovação tecnológica. Nos
anos 90 um dos membros da minha comissão de doutoramento–John Dockery da Defense
Information Systems Agency dos EUA–já me ensinava
sobre estratégias de guerra de informação para os chat rooms do inicio
da Web. Mas como é sabido nessa
área, os casos de desinformação com maior repercussão são propagados pelos
meios de comunicação convencionais. Não é preciso sequer ler as ideias de Chomsky sobre a fabricação de
consentimento para nos
lembramos que jornais de referencia como o New York Times foram a chave da propagação de mentiras sobre
armas de destruição maciça que levaram à guerra do Iraque, ou mesmo na guerra atual em Gaza.
É natural os
políticos e governos fazerem o enquadramento dos assuntos de forma a canalizar
a opinião da população para os seus interesses. Mas quando os meios de
comunicação o fazem sem base factual, perdem legitimidade enquanto um quarto
poder independente, reduzindo-se a agentes de propaganda do poder oficial.
Infelizmente esse enquadramento é mais a norma, do que a exceção. Por exemplo,
a análise de texto das reportagens dos meios de comunicação tradicionais sobre
o conflito Israelo-árabe ao longo dos anos mostra um enviesamento nítido contra
Palestinos–algo já demonstrado também para os principais
jornais americanos na atual guerra em Gaza, sabendo-se até que no New York Times há diretivas dos
editores para instruir os jornalistas no enquadramento desejado.
A situação no
jornalismo português fica ainda pior dada a facilidade de propagar noticias do
estrangeiro sem confirmação direta das fontes. A tecnologia atual possibilita a
receção, tradução e reprodução rápida de ideias (e até plágio de artigos) pré-fabricadas pelos principais canais de
noticias internacionais (AP, Reuters, New York Times, Fox,
the Guardian, etc.) Sendo eu emigrante nos EUA há muito tempo, observo
também uma certa arrogância tipicamente portuguesa de fingir (ou, pior, mesmo
acreditar) que se conhece intimamente a realidade política de outros países –
especialmente dos EUA – lendo esses canais à distância. Dados os recursos
limitados do jornalismo convencional nacional, a tentação de passar noticias
desses canais sem comprovar a fonte será forte.
Mas este jornalismo, qual retransmissor em rede, é potencialmente mais
nocivo na transmissão de desinformação do que as redes sociais, porque parte da
autoridade ainda reconhecida aos média convencionais.
Um caso que me tocou pessoalmente foi a cobertura dos protestos nas universidades americanas contra a guerra em Gaza. Como professor numa das universidades onde tem havido protestos e tratando-se do sistema académico americano que integro há mais de 30 anos, foi deveras frustrante ver a retransmissão de desinformação sobre o assunto em Portugal. Fui vendo os alunos das nossas universidades retratados como uma elite radical, preocupando-se caprichosamente com uma guerra distante. Uma imagem em nada semelhante aos meus alunos (nos protestos ou não) que admiro tanto–a composição das minhas aulas tipicamente tem proporção semelhante de cristãos, judeus e muçulmanos, um pouco menor de hindus, budistas e outros.
Um exemplo (não
exclusivo) por Teresa de Sousa no Publico: “No país mais rico do mundo, nas melhores
universidades do mundo, onde os estudantes pagam as mais elevadas propinas do
mundo, os
jovens que as frequentam gritam (alguns) ‘morte à América.” Apesar de ser natural em qualquer protesto
que “alguns” dissessem barbaridades, especialmente porque é comum protestos serem infiltrados por agitadores para os desacreditar e atacar, esta é comprovadamente uma notícia falsa. Com origem na Fox News (a rede de
desinformação convencional de Rupert Murdoch), foi depois amplificada pelo
humorista Bill Maher da HBO e pelo Atlantic, e daí foi um
passinho até ao jornal Público num artigo com titulo e temática muito semelhante. O problema é que o enquadramento falso dos
alunos como elitistas radicais fica assim lançado na discussão do assunto em
Portugal com a autoridade de um jornal importante, o que é bem pior do que se
fosse feito por um cidadão comum nas redes sociais.
O enquadramento
dos protestos baseou-se noutras narrativas falsas, algumas das quais projetadas
da realidade portuguesa para a americana. Por exemplo, a noção que os alunos
que protestavam em 1968 tinham maior legitimidade porque não queriam ir para a
guerra do Vietname esquece vários factos importantes: os alunos universitários
em 1968 estavam isentos da recruta, 2/3 dos soldados americanos nessa guerra
eram voluntários, nas zonas de combate só 25% dos soldados eram da recruta e só 8% da população de rapazes elegíveis
foi recrutada para essa guerra. Em contrapartida, em 2024, 13.4% dos homens americanos já serviu nas
forças armadas americanas que nas últimas décadas têm estado praticamente sempre envolvidas em
guerras no Médio Oriente. Nas minhas aulas tenho frequentemente veteranos (feridos
física e emocionalmente) dessas guerras, na sua maioria começadas sobre
premissas falsas fabricadas com ajuda dos média convencionais.
Além do
envolvimento direto, ou de amigos e familiares, nessas guerras sem sentido,
todos os Americanos estão envolvidos na guerra em Gaza. A Palestina não está
distante quando é bombardeada com armas pagas pelo seu país. Israel é o maior recipiente de fundos dos EUA —só
este ano foram aprovados 14 mil milhões acima dos
habituais 4 mil milhões anuais. Portanto, o que acontece em Gaza é da absoluta responsabilidade do
contribuinte americano–isto quando em 1970 um jovem americano conseguia pagar as
propinas trabalhando poucas horas semanais a salário mínimo, mas hoje precisaria de trabalhar 100 horas por
semana para pagar uma universidade privada. É precisamente por causa do dinheiro investido
em seu nome que os alunos protestam (impostos, propinas e património
universitário). Em democracia não é capricho exigir que o dinheiro de todos
seja investido de acordo com os seus valores, o que explica também porquê os
protestos não se focam tanto no Sudão ou na libertação dos reféns do Hamas, uma
vez que não é neles que as universidades ou o governo americano investem, é no
exército de Israel. Mas mesmo isso é
mais um exemplo de desinformação sobre estes protestos: “Os estudantes americanos não reivindicam a
libertação dos reféns que ainda estarão com vida nas mãos do Hamas.” Os protestos da universidade de
Columbia (os primeiros) são organizados por uma coligação de 116 grupos com visões distintas. Mas um dos grupos centrais,
o primeiro que Columbia suspendeu, é o Jewish Voice for Peace que desde
Outubro exige a libertação de todos os reféns. Quase todos os protestos noutras universidades o fizeram também—incluindo os da minha universidade.
No final das contas, o enquadramento destes protestos usa desinformação para ofuscar o facto que os protestos de alunos americanos têm sempre estado do lado certo da história—é isso que assusta o poder e a sua geração. Alguém acha hoje que a guerra do Vietname foi uma boa ideia? Mais, os protestos estudantis foram fundamentais para acabar com a segregação racial—o Senador Bernie Sanders foi preso na Universidade de Chicago em 1963 nessa luta que todos hoje celebram mas na altura, mesmo Kennedy achava agressiva demais. Foram também os protestos de alunos nos anos 80 que levaram a universidade de Columbia a ser a primeira a desinvestir do regime de apartheid na Africa do Sul, numa cadeia de eventos que culminou com o Congresso norte-americano a impor sanções que acabaram com esse regime, nulificando o veto de Reagan que, tal como Thatcher, dizia ainda em 1985 que Nelson Mandela era um terrorista.
Tal como nesses momentos de protesto, é provável que estejamos realmente numa encruzilhada da História em que são os alunos a mostrar o caminho da decência. Nesta circunstância, mais do que nunca, o jornalismo convencional não deveria servir apenas a reação do poder assustado com os desejos da geração mais bem informada de sempre–com acesso à inteligência coletiva possibilitada pela Internet. Se os média convencionais não quiserem desaparecer perdendo para sempre a nova geração, têm de funcionar como um quarto poder legítimo, e não como mecanismo de propagação da propaganda do poder vigente–isso podem fazer a Internet e a inteligência artificial facilmente sem eles.
Labels: #journalism, #media, #misinformation, #politics, #studentprotests
2024-04-18
Slippy Body
Labels: #BaileFunk, #Bass, #DJ, #DJSet, #House, #Music, #Techno
2024-02-02
Polimedicação é pior em idosos e mulheres, mas pode-se melhorar com análise de dados
Artigo publicado: L.M. Rocha [2024]. Polimedicação é pior em idosos e mulheres, mas pode-se melhorar com análise de dados. Público . January 31, 2024.
Alexandra Campos
publicou recentemente no Público uma reportagem muito interessante sobe o
problema da polimedicação em Portugal. Ficámos a saber que mais de um terço da população acima dos
65 anos toma mais de cinco medicamentos simultaneamente–o que remete Portugal para
o topo dos países com este problema na Europa (só atrás da Republica Checa e
Israel que também participou neste estudo europeu).
Um dos grandes
problemas da polimedicação é que os medicamentos são muitas vezes receitados
por médicos de especialidades e até de sistemas de saúde diferentes, que não
recebem alertas sobre outros medicamentos já receitados ao mesmo paciente. Além
disso, frequentemente os médicos não estão cientes das muitas interações
nocivas entre os vários medicamentos que são conhecidas, estabelecidas
cientificamente e publicadas em bases de dados públicas–não se trata sequer de
potenciais interações desconhecidas que obviamente não podem ser usadas como alertas,
mas cujo risco aumenta com polimedicação.
O nosso grupo de
investigação tem-se especializado em analisar o problema das interações nocivas
na polimedicação, com projetos patrocinados nos últimos 10 anos pelos National Institutes
of Health nos EUA e também a nível nacional pela Fundação para a Ciencia e Tecnologia (FCT). Para perceber a escala do problema das interações medicamentosas,
avaliámos os cuidados primários em populações distintas de três continentes: 133 mil pacientes da cidade de Blumenau no Brasil (Estado de Santa Catarina), 5,5 milhões de pacientes na Catalunha e
250 mil pacientes do maior sistema de saúde privado da cidade de Indianápolis nos EUA (Estado de Indiana). Apesar de
diferenças entre os vários sistemas de saúde–por exemplo, o formulário do sistema publico de Blumenau só inclui 140
medicamentos enquanto o sistema privado de Indianápolis inclui mais de mil–,
ficou bem claro que em todos estes sistemas as mulheres têm bastante maior
risco de lhes serem receitadas interações conhecidas, algumas muito nocivas.
Em relação a idosos, o
problema é ainda bem maior do que descrito na reportagem do Público. De facto, o
nosso último estudo (ainda em avaliação em revista científica) mostra que se os médicos
prescrevessem medicamentos aleatoriamente nas mesmas proporções, seriam
receitadas menos interações medicamentosas prejudiciais do que os números reais.
Isto é, os idosos (de ambos os sexos mas pior para mulheres) estão
potencialmente mais expostos às complicações da polimedicação do que se fossem
tirar medicamentos das prateleiras ao calhas!
Uma vez que Portugal tem maior proporção da sua
população em polimedicação do que Espanha, este problema deve ser ainda maior por cá, só
que não sabemos por não haver disponibilização desses dados. É importante
frisar que a análise desses dados leva à descoberta e recomendação de ações
especificas que podem melhorar a saúde e reduzir os custos de saúde publica. No
nosso estudo, descobrimos que se o sistema de saúde catalão substituir um único
medicamento (Omeprazole, inibidor da bomba de protões para tratamento de
refluxo gástrico) por outros medicamentos semelhantes, o risco de ser receitada
uma interação na polimedicação nesta população reduz-se em 23% para mulheres e
20% para homens, reduzindo significativamente também a diferença entre sexos
neste problema–com a substituição de um único medicamento!
A recomendação
dessa ou de outras substituições poderia ser facilmente implementada com a
introdução de um sistema de alerta robusto, na prescrição, nas farmácias ou no
acompanhamento de cada paciente. Além de melhorar a saúde dos pacientes, o que
deve ser o principal objetivo ético, a redução dos problemas inerentes à
polimedicação – especialmente numa população envelhecida – pode certamente
levar também à redução de custos. Uma estimativa conservadora que fizemos da hospitalização por interações medicamentosas,
conclui que os seus custos no estado brasileiro de Santa Catarina (população 7
milhões bem mais jovem que a de Portugal e com menos medicamentos disponíveis) ascendem
a entre 21 a 61 milhões de dólares americanos por cada 18 meses .
Contruir alertas para possíveis interações ou reações adversas em polimedicação não só é relativamente fácil de fazer, como imensos sistemas de saúde os têm. Uma vez que existe um sistema nacional de códigos de prescrição, é também possível fazer um sistema nacional de alertas integrativo para médicos no ato da prescrição, farmácias no ato da venda ou no acompanhamento de pacientes por gestores de saúde publica. No caso das interações e reações mais perigosas conhecidas, uma receita deveria acionar um alerta para que o médico confirme a necessidade de prescrever um medicamento que se sabe causar potenciais problemas graves na presença de outros já prescritos ao mesmo paciente (de que o médico pode nem estar ciente), bem como a recomendação automática de alternativas. Também o próprio paciente deveria receber alertas, já que os folhetos informativos de cada medicamento são normalmente de difícil compreensão. Preocupamo-nos muito com a privacidade dos dados, mas pouco com a ética de se prescrever polimedicação sem informar pacientes de potenciais problemas associados.
Em Portugal, mesmo contactando as entidades responsáveis ao abrigo de projetos da FCT especificamente desenhados para se utilizar a ciência de dados e a inteligência artificial na administração pública, é muito difícil obter dados de prescrição médica para investigação científica. De facto, é muito difícil saber qual a verdadeira escala deste problema, muito menos implementar mecanismos para melhorar os resultados e custos de saúde associados–ao contrário da Catalunha e Dinamarca que disponibilizam estes dados sobre toda a sua população durante décadas. Seguindo esses exemplos excelentes (que utilizam todas as normas europeias de privacidade e segurança) na utilização de dados ao serviço do bem-estar da população, está mais do que na hora de se levar a sério o problema da polimedicação, disponibilizando os dados de prescrição nacionais com vista à implementação de ações especificas para melhor servir a saúde publica nacional.
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2024-01-20
Mighty Blue Monday
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2024-01-02
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2023-11-28
Jovens Reduzidos a um Número
Nota: este artigo é uma versão mais longa (com mais dados) de artigo publicado no jornal Público no dia 27 de Novembro de 2023
Foi recentemente divulgado o primeiro estudo significativo sobre a saúde mental dos alunos da Universidade de Lisboa (UL), indicando uma situação preocupante: apenas 36,4% dos alunos se dizem motivados para realizar o seu trabalho académico, e só 14,5% se sentem bem a maior parte do tempo. Pelo menos um quarto dos alunos é identificado com ansiedade (26.4%) ou depressão (25.2%), com 15,3% qualificados em situação extrema de stress, isto é, em burnout. O estudo não foi publicado e não conhecendo a metodologia exata, a comparação com outros estudos é difícil. Mas sendo uma estimativa correta e comparável, a saúde mental na UL estará muito pior do que nas universidades americanas onde ansiedade e depressão afetam cerca de 12 e 9% dos alunos respetivamente,[LR1] mas abaixo de níveis observados no Reino unido (42,1% com ansiedade e 34,5% com depressão)[LR2] .
A subordinação e
submissão involuntária por tempo prolongado é um fator conhecido na ansiedade e depressão e na relacionada falta de motivação. Por outras
palavras, estas patologias são prevalentes em contextos em que as pessoas não
têm controlo sobre as suas vidas, especialmente em jovens. Não é, pois, de estranhar que depois de tantos
anos num sistema educacional onde têm pouca escolha ou controlo sobre a sua
vida, tantos alunos se sintam desmotivados e com patologia mental severa.
A filósofa de
educação italiana Maria Montessori, disse em 1951 na UNESCO que as “crianças e
jovens são uma população sem direitos que é crucificada em bancos de escola por
toda a parte e que---apesar de toda a nossa conversa sobre democracia,
liberdade e direitos humanos–está escravizada
na ordem escolar, por regras intelectuais que nós lhe impomos.” Também Paulo
Freire, na sua pedagogia dos oprimidos de 1968, qualificou o sistema de
educação tradicional como “educação bancária,” onde alunos são “como um cofre vazio em que o professor acrescenta
fórmulas, letras e conhecimento científico até [os] ‘enriquecer’.” É assim que muitos educadores modernos ainda pensam a
escola, daí tanta conversa sobre medir “aprendizagens perdidas”– como se o conhecimento fosse descarregado em fardos de conteúdos
platónicos para professores depositarem nos cofres vazios dos alunos, em vez de
um processo corpórea de pesquisa automotivado como é visto pela ciência cognitiva.
Infelizmente, como Montessori, Freire e outros argumentaram, esta forma de organizar a escola cria um diferencial de poder entre aluno e professor/sistema educativo que retira ao aluno o controlo sobre a sua vida, a sua agência humana, tão importante para a saúde mental. O objetivo desta submissão involuntária imposta aos alunos, será produzir trabalhadores submissos que aceitem desigualdade e injustiça com naturalidade – argumento desenvolvido por estes e outros pensadores, como Daniel Greenberg ou Louis Althusser, mas fora da razão deste artigo.
Existem muitos
pontos na educação portuguesa onde se poderia substituir professores-autoridade
“descarregarregando aprendizagens”, por pesquisa corpórea e automotivada. Do
infantário à universidade, a escolha curricular, empenhamento físico e
automotivação deveriam ser a norma, não a exceção. Mas foco-me no ápice da educação pré-universitária, quando após 12 anos com
raras oportunidades de escolha e automotivação sem ser fora da escola, cada
aluno fica marcado e reduzido a um número: a sua média de notas (de cadeiras
chave e exames). É este numerus
clausus que decide os cursos universitários a que jovens podem aceder,
independentemente da sua real vocação ou desejo. É interessante que em latim
este termo quer dizer “número fechado,” porque é realmente numa clausura de
difícil acesso que o nosso sistema educativo coloca a universidade. É, pois, natural
que grande parte dos jovens rejeitados da sua vocação se sintam sem
livre-arbítrio sobre a sua própria vida, seguindo-se a desmotivação como grande
fator de depressão e ansiedade.
Embora muitos defendam o numerus
clausus como a forma mais justa de selecionar os melhores alunos, é sabido
que as notas escolares dependem de fatores como escolaridade publica ou privada, dinheiro e educação da
família, e até do género (raparigas tendem a ser mais motivadas e rapazes de contextos desfavorecidos têm pior aproveitamento do que
raparigas na mesma situação.) Já os exames com tempo limitado também não escolhem necessariamente
quem é mais apto a resolver até os problemas dos próprios exames (e tendem a
enviesar a favor de rapazes.) Além disso, a pretensa meritocracia do numerus clausus é uma tautologia: o sistema académico define o
que é considerado “melhor” e depois declara que os aceites são os “melhores”. Mas onde está a demonstração que as médias e
exames mais altos identificam as pessoas mais aptas para determinada profissão?
Alguém acha que os melhores médicos se escolhem pela capacidade de receber e
memorizar “aprendizagens” de Português ou Biologia no ensino secundário?
Mais fundamentalmente
ainda, mesmo que tivéssemos uma medida perfeita de mérito (que não é possível
por não sabermos como medir e priorizar tipos diferentes de inteligência),
porquê selecionar só os melhores para determinados cursos? Quando o número de
pessoas que podem entrar na clausura é muito limitado, a falsa meritocracia (tautológica)
reduz a diversidade de pessoas treinadas para determinada profissão, sem
garantir aptidão. De facto, a maioria dos alunos que entram nos cursos com médias
de entrada mais altas – que são os que levam a profissões mais bem pagas – têm
pais com educação universitária e nível socioeconómico mais elevado. Portanto,
o numerus clausus reduz a diversidade propagando privilégio e elitismo.
É importante frisar que o
numerus clausus não é a única forma de organizar o acesso ao ensino
superior. Nas universidades de topo dos EUA a nota de exames é opcional, sendo o acesso decidido por fatores múltiplos como currículo académico, entrevista, atividades
extracurriculares, ensaio, etc. Na Bélgica e na França, que levam o direito
constitucional de acesso à universidade a sério, os alunos entram no curso que
querem (com algumas restrições para cursos como medicina e engenharia civil).
Críticos do
sistema de acesso livre vigente na Bélgica e na França, avisam que nesses
sistemas o entrave simplesmente acontece mais tarde, porque os alunos têm de
passar provas difíceis após os primeiros anos na universidade, havendo quem tenha
de mudar de curso ou mesmo não acabe a universidade. Mas a comparação com
Portugal não mostra isso. Segundo dados da OCDE, a percentagem de alunos que não completam o
curso em que entraram (após 3 anos da duração teórica do mesmo) é de 72% em
Portugal, 71% em França, e 68% na Bélgica Flamenga---na Bélgica Francófona o
valor é 52%, mas não é diretamente comparável porque se refere apenas a escolas
de elite (hautes écoles e écoles des arts), enquanto nos outros
países se refere a todos os bacharéis/licenciaturas. É importante notar que no caso da França e da
Bélgica os alunos entram nos cursos que quiserem, enquanto em Portugal a base
da proporção apresentada refere-se apenas aos alunos que passam o numerus
clausus. Isto é, mesmo impedindo grande parte dos alunos de entrarem no
curso que querem, a proporção de alunos em Portugal que termina os cursos em que
entram é muito semelhante à de países onde entram todos no curso que querem!
Mas a situação é
ainda mais embaraçosa se considerarmos a proporção de alunos que termina um
curso STEM (ciência, tecnologia, engenharia ou matemática), no mesmo (ou
noutro) campo e nível, mas não necessariamente no curso em que primeiro
entraram: cerca de 63% (71%) em Portugal contra 74% (77%) na Bélgica Flamenga
(OECD não apresenta estes dados para França). Em suma, muito menos alunos
acabam cursos STEM[1] em
Portugal após numerus clausus, do que na Bélgica Flamenga onde os alunos
entram no curso que querem após terminar o secundário! Isto é, não há qualquer
vantagem em excluir à partida alunos dos cursos em que eles querem entrar,
retirando aos jovens o controlo sobre as suas próprias vidas, com enorme custo
para a sua saúde mental e realização pessoal.
É importante
frisar que é uma decisão política não dar aos jovens maior controlo sobre a sua
educação e acima de tudo bloquear escolhas importantes para a sua vida futura. Apesar da revolução de abril há quase 50 anos, e a
promessa de acesso ao ensino superior para todos da constituição que se lhe
seguiu, não houve ainda revolução do modo de ensino. Continuamos a querer
produzir trabalhadores submissos e habituados a conviver com a desigualdade da
autoridade, com grande custo para a sua saúde mental e realização pessoal. Não tem de ser assim, não temos que nos habituar a tudo. Se queremos criar agentes de mudança
saudáveis, com garra para a inovação, temos de começar por dar aos jovens maior
controlo sobre as suas vidas, em vez de os reduzir ao número que os fecha fora
da sua vocação e motivação.
[1] Noto que a proporção de alunos que
completam cursos STEM é muito pior para homens do que para mulheres, 59% para
80% em Portugal e 67% para 85% na Bélgica Flamenga. Um assunto importante, mas
separado.
[LR1]Pedrelli, P., Nyer,
M., Yeung, A. et al. College Students: Mental Health Problems
and Treatment Considerations. Acad Psychiatry 39,
503–511 (2015). https://doi.org/10.1007/s40596-014-0205-9
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