2024-05-31
Anatomia da desinformação convencional: o caso dos protestos nas universidades americanas
Uma preocupação
atual é o putativo perigo das redes sociais para a propagação de desinformação.
São frequentes editoriais e artigos de opinião sobre os perigos da
desinformação no X, TikTok, Facebook, Instagram,
etc. Aliás, este é um receio recorrente sempre que há inovação tecnológica. Nos
anos 90 um dos membros da minha comissão de doutoramento–John Dockery da Defense
Information Systems Agency dos EUA–já me ensinava
sobre estratégias de guerra de informação para os chat rooms do inicio
da Web. Mas como é sabido nessa
área, os casos de desinformação com maior repercussão são propagados pelos
meios de comunicação convencionais. Não é preciso sequer ler as ideias de Chomsky sobre a fabricação de
consentimento para nos
lembramos que jornais de referencia como o New York Times foram a chave da propagação de mentiras sobre
armas de destruição maciça que levaram à guerra do Iraque, ou mesmo na guerra atual em Gaza.
É natural os
políticos e governos fazerem o enquadramento dos assuntos de forma a canalizar
a opinião da população para os seus interesses. Mas quando os meios de
comunicação o fazem sem base factual, perdem legitimidade enquanto um quarto
poder independente, reduzindo-se a agentes de propaganda do poder oficial.
Infelizmente esse enquadramento é mais a norma, do que a exceção. Por exemplo,
a análise de texto das reportagens dos meios de comunicação tradicionais sobre
o conflito Israelo-árabe ao longo dos anos mostra um enviesamento nítido contra
Palestinos–algo já demonstrado também para os principais
jornais americanos na atual guerra em Gaza, sabendo-se até que no New York Times há diretivas dos
editores para instruir os jornalistas no enquadramento desejado.
A situação no
jornalismo português fica ainda pior dada a facilidade de propagar noticias do
estrangeiro sem confirmação direta das fontes. A tecnologia atual possibilita a
receção, tradução e reprodução rápida de ideias (e até plágio de artigos) pré-fabricadas pelos principais canais de
noticias internacionais (AP, Reuters, New York Times, Fox,
the Guardian, etc.) Sendo eu emigrante nos EUA há muito tempo, observo
também uma certa arrogância tipicamente portuguesa de fingir (ou, pior, mesmo
acreditar) que se conhece intimamente a realidade política de outros países –
especialmente dos EUA – lendo esses canais à distância. Dados os recursos
limitados do jornalismo convencional nacional, a tentação de passar noticias
desses canais sem comprovar a fonte será forte.
Mas este jornalismo, qual retransmissor em rede, é potencialmente mais
nocivo na transmissão de desinformação do que as redes sociais, porque parte da
autoridade ainda reconhecida aos média convencionais.
Um caso que me tocou pessoalmente foi a cobertura dos protestos nas universidades americanas contra a guerra em Gaza. Como professor numa das universidades onde tem havido protestos e tratando-se do sistema académico americano que integro há mais de 30 anos, foi deveras frustrante ver a retransmissão de desinformação sobre o assunto em Portugal. Fui vendo os alunos das nossas universidades retratados como uma elite radical, preocupando-se caprichosamente com uma guerra distante. Uma imagem em nada semelhante aos meus alunos (nos protestos ou não) que admiro tanto–a composição das minhas aulas tipicamente tem proporção semelhante de cristãos, judeus e muçulmanos, um pouco menor de hindus, budistas e outros.
Um exemplo (não
exclusivo) por Teresa de Sousa no Publico: “No país mais rico do mundo, nas melhores
universidades do mundo, onde os estudantes pagam as mais elevadas propinas do
mundo, os
jovens que as frequentam gritam (alguns) ‘morte à América.” Apesar de ser natural em qualquer protesto
que “alguns” dissessem barbaridades, especialmente porque é comum protestos serem infiltrados por agitadores para os desacreditar e atacar, esta é comprovadamente uma notícia falsa. Com origem na Fox News (a rede de
desinformação convencional de Rupert Murdoch), foi depois amplificada pelo
humorista Bill Maher da HBO e pelo Atlantic, e daí foi um
passinho até ao jornal Público num artigo com titulo e temática muito semelhante. O problema é que o enquadramento falso dos
alunos como elitistas radicais fica assim lançado na discussão do assunto em
Portugal com a autoridade de um jornal importante, o que é bem pior do que se
fosse feito por um cidadão comum nas redes sociais.
O enquadramento
dos protestos baseou-se noutras narrativas falsas, algumas das quais projetadas
da realidade portuguesa para a americana. Por exemplo, a noção que os alunos
que protestavam em 1968 tinham maior legitimidade porque não queriam ir para a
guerra do Vietname esquece vários factos importantes: os alunos universitários
em 1968 estavam isentos da recruta, 2/3 dos soldados americanos nessa guerra
eram voluntários, nas zonas de combate só 25% dos soldados eram da recruta e só 8% da população de rapazes elegíveis
foi recrutada para essa guerra. Em contrapartida, em 2024, 13.4% dos homens americanos já serviu nas
forças armadas americanas que nas últimas décadas têm estado praticamente sempre envolvidas em
guerras no Médio Oriente. Nas minhas aulas tenho frequentemente veteranos (feridos
física e emocionalmente) dessas guerras, na sua maioria começadas sobre
premissas falsas fabricadas com ajuda dos média convencionais.
Além do
envolvimento direto, ou de amigos e familiares, nessas guerras sem sentido,
todos os Americanos estão envolvidos na guerra em Gaza. A Palestina não está
distante quando é bombardeada com armas pagas pelo seu país. Israel é o maior recipiente de fundos dos EUA —só
este ano foram aprovados 14 mil milhões acima dos
habituais 4 mil milhões anuais. Portanto, o que acontece em Gaza é da absoluta responsabilidade do
contribuinte americano–isto quando em 1970 um jovem americano conseguia pagar as
propinas trabalhando poucas horas semanais a salário mínimo, mas hoje precisaria de trabalhar 100 horas por
semana para pagar uma universidade privada. É precisamente por causa do dinheiro investido
em seu nome que os alunos protestam (impostos, propinas e património
universitário). Em democracia não é capricho exigir que o dinheiro de todos
seja investido de acordo com os seus valores, o que explica também porquê os
protestos não se focam tanto no Sudão ou na libertação dos reféns do Hamas, uma
vez que não é neles que as universidades ou o governo americano investem, é no
exército de Israel. Mas mesmo isso é
mais um exemplo de desinformação sobre estes protestos: “Os estudantes americanos não reivindicam a
libertação dos reféns que ainda estarão com vida nas mãos do Hamas.” Os protestos da universidade de
Columbia (os primeiros) são organizados por uma coligação de 116 grupos com visões distintas. Mas um dos grupos centrais,
o primeiro que Columbia suspendeu, é o Jewish Voice for Peace que desde
Outubro exige a libertação de todos os reféns. Quase todos os protestos noutras universidades o fizeram também—incluindo os da minha universidade.
No final das contas, o enquadramento destes protestos usa desinformação para ofuscar o facto que os protestos de alunos americanos têm sempre estado do lado certo da história—é isso que assusta o poder e a sua geração. Alguém acha hoje que a guerra do Vietname foi uma boa ideia? Mais, os protestos estudantis foram fundamentais para acabar com a segregação racial—o Senador Bernie Sanders foi preso na Universidade de Chicago em 1963 nessa luta que todos hoje celebram mas na altura, mesmo Kennedy achava agressiva demais. Foram também os protestos de alunos nos anos 80 que levaram a universidade de Columbia a ser a primeira a desinvestir do regime de apartheid na Africa do Sul, numa cadeia de eventos que culminou com o Congresso norte-americano a impor sanções que acabaram com esse regime, nulificando o veto de Reagan que, tal como Thatcher, dizia ainda em 1985 que Nelson Mandela era um terrorista.
Tal como nesses momentos de protesto, é provável que estejamos realmente numa encruzilhada da História em que são os alunos a mostrar o caminho da decência. Nesta circunstância, mais do que nunca, o jornalismo convencional não deveria servir apenas a reação do poder assustado com os desejos da geração mais bem informada de sempre–com acesso à inteligência coletiva possibilitada pela Internet. Se os média convencionais não quiserem desaparecer perdendo para sempre a nova geração, têm de funcionar como um quarto poder legítimo, e não como mecanismo de propagação da propaganda do poder vigente–isso podem fazer a Internet e a inteligência artificial facilmente sem eles.
Labels: #journalism, #media, #misinformation, #politics, #studentprotests
2024-04-18
Slippy Body
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2024-02-02
Polimedicação é pior em idosos e mulheres, mas pode-se melhorar com análise de dados
Artigo publicado: L.M. Rocha [2024]. Polimedicação é pior em idosos e mulheres, mas pode-se melhorar com análise de dados. Público . January 31, 2024.
Alexandra Campos
publicou recentemente no Público uma reportagem muito interessante sobe o
problema da polimedicação em Portugal. Ficámos a saber que mais de um terço da população acima dos
65 anos toma mais de cinco medicamentos simultaneamente–o que remete Portugal para
o topo dos países com este problema na Europa (só atrás da Republica Checa e
Israel que também participou neste estudo europeu).
Um dos grandes
problemas da polimedicação é que os medicamentos são muitas vezes receitados
por médicos de especialidades e até de sistemas de saúde diferentes, que não
recebem alertas sobre outros medicamentos já receitados ao mesmo paciente. Além
disso, frequentemente os médicos não estão cientes das muitas interações
nocivas entre os vários medicamentos que são conhecidas, estabelecidas
cientificamente e publicadas em bases de dados públicas–não se trata sequer de
potenciais interações desconhecidas que obviamente não podem ser usadas como alertas,
mas cujo risco aumenta com polimedicação.
O nosso grupo de
investigação tem-se especializado em analisar o problema das interações nocivas
na polimedicação, com projetos patrocinados nos últimos 10 anos pelos National Institutes
of Health nos EUA e também a nível nacional pela Fundação para a Ciencia e Tecnologia (FCT). Para perceber a escala do problema das interações medicamentosas,
avaliámos os cuidados primários em populações distintas de três continentes: 133 mil pacientes da cidade de Blumenau no Brasil (Estado de Santa Catarina), 5,5 milhões de pacientes na Catalunha e
250 mil pacientes do maior sistema de saúde privado da cidade de Indianápolis nos EUA (Estado de Indiana). Apesar de
diferenças entre os vários sistemas de saúde–por exemplo, o formulário do sistema publico de Blumenau só inclui 140
medicamentos enquanto o sistema privado de Indianápolis inclui mais de mil–,
ficou bem claro que em todos estes sistemas as mulheres têm bastante maior
risco de lhes serem receitadas interações conhecidas, algumas muito nocivas.
Em relação a idosos, o
problema é ainda bem maior do que descrito na reportagem do Público. De facto, o
nosso último estudo (ainda em avaliação em revista científica) mostra que se os médicos
prescrevessem medicamentos aleatoriamente nas mesmas proporções, seriam
receitadas menos interações medicamentosas prejudiciais do que os números reais.
Isto é, os idosos (de ambos os sexos mas pior para mulheres) estão
potencialmente mais expostos às complicações da polimedicação do que se fossem
tirar medicamentos das prateleiras ao calhas!
Uma vez que Portugal tem maior proporção da sua
população em polimedicação do que Espanha, este problema deve ser ainda maior por cá, só
que não sabemos por não haver disponibilização desses dados. É importante
frisar que a análise desses dados leva à descoberta e recomendação de ações
especificas que podem melhorar a saúde e reduzir os custos de saúde publica. No
nosso estudo, descobrimos que se o sistema de saúde catalão substituir um único
medicamento (Omeprazole, inibidor da bomba de protões para tratamento de
refluxo gástrico) por outros medicamentos semelhantes, o risco de ser receitada
uma interação na polimedicação nesta população reduz-se em 23% para mulheres e
20% para homens, reduzindo significativamente também a diferença entre sexos
neste problema–com a substituição de um único medicamento!
A recomendação
dessa ou de outras substituições poderia ser facilmente implementada com a
introdução de um sistema de alerta robusto, na prescrição, nas farmácias ou no
acompanhamento de cada paciente. Além de melhorar a saúde dos pacientes, o que
deve ser o principal objetivo ético, a redução dos problemas inerentes à
polimedicação – especialmente numa população envelhecida – pode certamente
levar também à redução de custos. Uma estimativa conservadora que fizemos da hospitalização por interações medicamentosas,
conclui que os seus custos no estado brasileiro de Santa Catarina (população 7
milhões bem mais jovem que a de Portugal e com menos medicamentos disponíveis) ascendem
a entre 21 a 61 milhões de dólares americanos por cada 18 meses .
Contruir alertas para possíveis interações ou reações adversas em polimedicação não só é relativamente fácil de fazer, como imensos sistemas de saúde os têm. Uma vez que existe um sistema nacional de códigos de prescrição, é também possível fazer um sistema nacional de alertas integrativo para médicos no ato da prescrição, farmácias no ato da venda ou no acompanhamento de pacientes por gestores de saúde publica. No caso das interações e reações mais perigosas conhecidas, uma receita deveria acionar um alerta para que o médico confirme a necessidade de prescrever um medicamento que se sabe causar potenciais problemas graves na presença de outros já prescritos ao mesmo paciente (de que o médico pode nem estar ciente), bem como a recomendação automática de alternativas. Também o próprio paciente deveria receber alertas, já que os folhetos informativos de cada medicamento são normalmente de difícil compreensão. Preocupamo-nos muito com a privacidade dos dados, mas pouco com a ética de se prescrever polimedicação sem informar pacientes de potenciais problemas associados.
Em Portugal, mesmo contactando as entidades responsáveis ao abrigo de projetos da FCT especificamente desenhados para se utilizar a ciência de dados e a inteligência artificial na administração pública, é muito difícil obter dados de prescrição médica para investigação científica. De facto, é muito difícil saber qual a verdadeira escala deste problema, muito menos implementar mecanismos para melhorar os resultados e custos de saúde associados–ao contrário da Catalunha e Dinamarca que disponibilizam estes dados sobre toda a sua população durante décadas. Seguindo esses exemplos excelentes (que utilizam todas as normas europeias de privacidade e segurança) na utilização de dados ao serviço do bem-estar da população, está mais do que na hora de se levar a sério o problema da polimedicação, disponibilizando os dados de prescrição nacionais com vista à implementação de ações especificas para melhor servir a saúde publica nacional.
Labels: #Pharmachology, #portugal, #Research
2024-01-20
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2024-01-02
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2023-11-28
Jovens Reduzidos a um Número
Nota: este artigo é uma versão mais longa (com mais dados) de artigo publicado no jornal Público no dia 27 de Novembro de 2023
Foi recentemente divulgado o primeiro estudo significativo sobre a saúde mental dos alunos da Universidade de Lisboa (UL), indicando uma situação preocupante: apenas 36,4% dos alunos se dizem motivados para realizar o seu trabalho académico, e só 14,5% se sentem bem a maior parte do tempo. Pelo menos um quarto dos alunos é identificado com ansiedade (26.4%) ou depressão (25.2%), com 15,3% qualificados em situação extrema de stress, isto é, em burnout. O estudo não foi publicado e não conhecendo a metodologia exata, a comparação com outros estudos é difícil. Mas sendo uma estimativa correta e comparável, a saúde mental na UL estará muito pior do que nas universidades americanas onde ansiedade e depressão afetam cerca de 12 e 9% dos alunos respetivamente,[LR1] mas abaixo de níveis observados no Reino unido (42,1% com ansiedade e 34,5% com depressão)[LR2] .
A subordinação e
submissão involuntária por tempo prolongado é um fator conhecido na ansiedade e depressão e na relacionada falta de motivação. Por outras
palavras, estas patologias são prevalentes em contextos em que as pessoas não
têm controlo sobre as suas vidas, especialmente em jovens. Não é, pois, de estranhar que depois de tantos
anos num sistema educacional onde têm pouca escolha ou controlo sobre a sua
vida, tantos alunos se sintam desmotivados e com patologia mental severa.
A filósofa de
educação italiana Maria Montessori, disse em 1951 na UNESCO que as “crianças e
jovens são uma população sem direitos que é crucificada em bancos de escola por
toda a parte e que---apesar de toda a nossa conversa sobre democracia,
liberdade e direitos humanos–está escravizada
na ordem escolar, por regras intelectuais que nós lhe impomos.” Também Paulo
Freire, na sua pedagogia dos oprimidos de 1968, qualificou o sistema de
educação tradicional como “educação bancária,” onde alunos são “como um cofre vazio em que o professor acrescenta
fórmulas, letras e conhecimento científico até [os] ‘enriquecer’.” É assim que muitos educadores modernos ainda pensam a
escola, daí tanta conversa sobre medir “aprendizagens perdidas”– como se o conhecimento fosse descarregado em fardos de conteúdos
platónicos para professores depositarem nos cofres vazios dos alunos, em vez de
um processo corpórea de pesquisa automotivado como é visto pela ciência cognitiva.
Infelizmente, como Montessori, Freire e outros argumentaram, esta forma de organizar a escola cria um diferencial de poder entre aluno e professor/sistema educativo que retira ao aluno o controlo sobre a sua vida, a sua agência humana, tão importante para a saúde mental. O objetivo desta submissão involuntária imposta aos alunos, será produzir trabalhadores submissos que aceitem desigualdade e injustiça com naturalidade – argumento desenvolvido por estes e outros pensadores, como Daniel Greenberg ou Louis Althusser, mas fora da razão deste artigo.
Existem muitos
pontos na educação portuguesa onde se poderia substituir professores-autoridade
“descarregarregando aprendizagens”, por pesquisa corpórea e automotivada. Do
infantário à universidade, a escolha curricular, empenhamento físico e
automotivação deveriam ser a norma, não a exceção. Mas foco-me no ápice da educação pré-universitária, quando após 12 anos com
raras oportunidades de escolha e automotivação sem ser fora da escola, cada
aluno fica marcado e reduzido a um número: a sua média de notas (de cadeiras
chave e exames). É este numerus
clausus que decide os cursos universitários a que jovens podem aceder,
independentemente da sua real vocação ou desejo. É interessante que em latim
este termo quer dizer “número fechado,” porque é realmente numa clausura de
difícil acesso que o nosso sistema educativo coloca a universidade. É, pois, natural
que grande parte dos jovens rejeitados da sua vocação se sintam sem
livre-arbítrio sobre a sua própria vida, seguindo-se a desmotivação como grande
fator de depressão e ansiedade.
Embora muitos defendam o numerus
clausus como a forma mais justa de selecionar os melhores alunos, é sabido
que as notas escolares dependem de fatores como escolaridade publica ou privada, dinheiro e educação da
família, e até do género (raparigas tendem a ser mais motivadas e rapazes de contextos desfavorecidos têm pior aproveitamento do que
raparigas na mesma situação.) Já os exames com tempo limitado também não escolhem necessariamente
quem é mais apto a resolver até os problemas dos próprios exames (e tendem a
enviesar a favor de rapazes.) Além disso, a pretensa meritocracia do numerus clausus é uma tautologia: o sistema académico define o
que é considerado “melhor” e depois declara que os aceites são os “melhores”. Mas onde está a demonstração que as médias e
exames mais altos identificam as pessoas mais aptas para determinada profissão?
Alguém acha que os melhores médicos se escolhem pela capacidade de receber e
memorizar “aprendizagens” de Português ou Biologia no ensino secundário?
Mais fundamentalmente
ainda, mesmo que tivéssemos uma medida perfeita de mérito (que não é possível
por não sabermos como medir e priorizar tipos diferentes de inteligência),
porquê selecionar só os melhores para determinados cursos? Quando o número de
pessoas que podem entrar na clausura é muito limitado, a falsa meritocracia (tautológica)
reduz a diversidade de pessoas treinadas para determinada profissão, sem
garantir aptidão. De facto, a maioria dos alunos que entram nos cursos com médias
de entrada mais altas – que são os que levam a profissões mais bem pagas – têm
pais com educação universitária e nível socioeconómico mais elevado. Portanto,
o numerus clausus reduz a diversidade propagando privilégio e elitismo.
É importante frisar que o
numerus clausus não é a única forma de organizar o acesso ao ensino
superior. Nas universidades de topo dos EUA a nota de exames é opcional, sendo o acesso decidido por fatores múltiplos como currículo académico, entrevista, atividades
extracurriculares, ensaio, etc. Na Bélgica e na França, que levam o direito
constitucional de acesso à universidade a sério, os alunos entram no curso que
querem (com algumas restrições para cursos como medicina e engenharia civil).
Críticos do
sistema de acesso livre vigente na Bélgica e na França, avisam que nesses
sistemas o entrave simplesmente acontece mais tarde, porque os alunos têm de
passar provas difíceis após os primeiros anos na universidade, havendo quem tenha
de mudar de curso ou mesmo não acabe a universidade. Mas a comparação com
Portugal não mostra isso. Segundo dados da OCDE, a percentagem de alunos que não completam o
curso em que entraram (após 3 anos da duração teórica do mesmo) é de 72% em
Portugal, 71% em França, e 68% na Bélgica Flamenga---na Bélgica Francófona o
valor é 52%, mas não é diretamente comparável porque se refere apenas a escolas
de elite (hautes écoles e écoles des arts), enquanto nos outros
países se refere a todos os bacharéis/licenciaturas. É importante notar que no caso da França e da
Bélgica os alunos entram nos cursos que quiserem, enquanto em Portugal a base
da proporção apresentada refere-se apenas aos alunos que passam o numerus
clausus. Isto é, mesmo impedindo grande parte dos alunos de entrarem no
curso que querem, a proporção de alunos em Portugal que termina os cursos em que
entram é muito semelhante à de países onde entram todos no curso que querem!
Mas a situação é
ainda mais embaraçosa se considerarmos a proporção de alunos que termina um
curso STEM (ciência, tecnologia, engenharia ou matemática), no mesmo (ou
noutro) campo e nível, mas não necessariamente no curso em que primeiro
entraram: cerca de 63% (71%) em Portugal contra 74% (77%) na Bélgica Flamenga
(OECD não apresenta estes dados para França). Em suma, muito menos alunos
acabam cursos STEM[1] em
Portugal após numerus clausus, do que na Bélgica Flamenga onde os alunos
entram no curso que querem após terminar o secundário! Isto é, não há qualquer
vantagem em excluir à partida alunos dos cursos em que eles querem entrar,
retirando aos jovens o controlo sobre as suas próprias vidas, com enorme custo
para a sua saúde mental e realização pessoal.
É importante
frisar que é uma decisão política não dar aos jovens maior controlo sobre a sua
educação e acima de tudo bloquear escolhas importantes para a sua vida futura. Apesar da revolução de abril há quase 50 anos, e a
promessa de acesso ao ensino superior para todos da constituição que se lhe
seguiu, não houve ainda revolução do modo de ensino. Continuamos a querer
produzir trabalhadores submissos e habituados a conviver com a desigualdade da
autoridade, com grande custo para a sua saúde mental e realização pessoal. Não tem de ser assim, não temos que nos habituar a tudo. Se queremos criar agentes de mudança
saudáveis, com garra para a inovação, temos de começar por dar aos jovens maior
controlo sobre as suas vidas, em vez de os reduzir ao número que os fecha fora
da sua vocação e motivação.
[1] Noto que a proporção de alunos que
completam cursos STEM é muito pior para homens do que para mulheres, 59% para
80% em Portugal e 67% para 85% na Bélgica Flamenga. Um assunto importante, mas
separado.
[LR1]Pedrelli, P., Nyer,
M., Yeung, A. et al. College Students: Mental Health Problems
and Treatment Considerations. Acad Psychiatry 39,
503–511 (2015). https://doi.org/10.1007/s40596-014-0205-9
Labels: #cognitivescience, #Conhecimento, #Educação, #mentalhealth
2023-08-08
Shake it!
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2023-01-27
What a Street Feeling!
Labels: #80s, #Disco, #DJ, #Electro, #Funk, #House, #Music, #NYC
2022-12-27
Hey City Zen 2022
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2022-12-19
Conhecimento não é descarregado
Labels: #Educação #Conhecimento
2022-11-16
The universal part is powerful
"'To restore the republic everywhere' is to restore every citizen to the command post in each of us. We are more than men and women, more than rich and poor, more than believers or atheists, more than Christians or Muslims, more than black or white, more than heterosexual or homosexual, more than individual persons: we are citizens. There is a universal part of us that fades away when we don't cultivate it, when we don't regularly make the effort to get out of ourselves".
The Style Council - Walls Come Tumbling Down (Live Aid)
Labels: #Citizenship, #politics, #Republic, #Unity, #universality
Antirracismo seria desconstruir a raça. Meu nome é Gal!
P.S. Meu nome é Gal! Viva o tropicalismo, verdadeira antropofagia de libertação, onde todas as raças são devoradas até à irrelevancia. Bullworth said it best.
2022-08-27
Homem Rock Liberta-te!
Labels: #Music
2022-03-03
Systems Anarchist?
Labels: #Anarchism, #politics, #Society
2022-03-01
Ser emigrante português é ser cidadão de décima classe e deixa muitos democraticamente apátridas
Publicado em Público, 22 de Março de 2022.
A controvérsia sobre o voto da emigração que foi anulado e levou à remarcação das eleições nos círculos
europeus, ofusca uma
muito maior afronta à cidadania dos emigrantes consagrada na lei eleitoral: os
seus votos contam apenas para 4 dos 230 deputados da Assembleia da República.
Segundo o Relatório da Emigração de 2020 no Portal
das Comunidades Portuguesas, em 2019 mais de 2.6 milhões de cidadãos portugueses nascidos em Portugal
encontravam-se a viver no estrangeiro − números que não incluem os cidadãos portugueses
filhos desses 2.6 milhões (os chamados, Luso-descendentes). Portanto, os cerca
de 10 milhões cidadãos residentes em Portugal elegem 226 deputados, enquanto os
2.6 milhões de cidadãos residentes no estrangeiro elegem apenas 4. Aproximadamente
44 mil residentes elegem cada deputado, mas são precisos 650 mil emigrantes
para conseguir o mesmo. Isto é, em termos de representatividade democrática, um
cidadão emigrante vale 7% dum cidadão residente. Para caracterizar esta
discrepância na representatividade de pessoas que são todas supostamente
cidadãs da mesma República, o epíteto cidadão de segunda não chega, mais
correto seria dizer que os emigrantes são cidadãos de décima classe.
É interessante
notar tantos artigos em Portugal sobre injustiças nas democracias dos outros,
mas tão pouco debate sobre este tratamento tão discriminatório de concidadãos na
nossa própria democracia. Quando tento abordar este tema oiço várias
justificações que penso valer a pena discutir. Num extremo, há quem diga que os
emigrantes nem se quer deviam ter deputado nenhum. É espantoso, mas infelizmente
comum, que haja quem abertamente defenda que se deve retirar a cidadania a
concidadãos por estarem a residir e trabalhar fora de Portugal em determinado
momento. É importante notar que não é normal que tal aconteça em democracias
ocidentais. Por exemplo, apesar dos problemas eleitorais que os media portugueses
adoram discutir, um cidadão americano não perde qualquer representatividade
democrática por viver noutro país por qualquer período de tempo−devo dizer que tenho dupla cidadania americana e portuguesa.
Uma justificação
menos extrema tem a ver com o conceito de representação material no processo
legislativo. Deste ponto de vista, os emigrantes, por não viverem em Portugal,
são vistos como cidadãos não vinculados às leis que o parlamento delibera. Isto
é, os emigrantes são vistos como cidadãos apenas simbolicamente – e não
materialmente – ligados à República.
Daí a sua representatividade dever ser apenas simbólica. Nesta perspetiva, os
emigrantes são tipo aqueles estrangeiros que gostam da seleção portuguesa de
futebol, mas não “arriscam a pele” em Portugal−não têm “skin in the game”
para usar a expressão que Nassim Nicholas Taleb tanto gosta.
Esta visão do emigrante
eternamente desterrado – e daí desacoplado materialmente da Républica −está
obviamente ultrapassada no mundo global do século XXI, especialmente para
emigrantes na União Europeia, nos países lusófonos e até nos parceiros atlânticos. Em meados do século XX talvez ainda fizesse
sentido pensar que os emigrantes fossem em barcos para portos distantes dos
quais nunca mais regressavam. Mas não é isso que se passa hoje. Os emigrantes,
que pertencem a todas as áreas e níveis de educação, vão e vêm, têm em Portugal
filhos, pais, família, propriedade, investimentos, produção intelectual e
criativa, etc. Grande parte deles estão tudo menos desacoplados da Républica.
Só uma visão
muito paroquial pode pensar que os cidadãos emigrantes não estão materialmente
envolvidos no país e que devem ser excluídos ou apenas incluídos
simbolicamente. Permitam-me partilhar um pouco mais da vida pessoal apenas para
exemplificar o tipo de relações bidirecionais, concretas comuns a muitos outros
emigrantes. Sou professor universitário e cientista há 30 anos nos EUA. Mas faço
contribuições materiais e intelectuais diretas para Portugal diariamente e, vice-versa,
é óbvio que as leis deliberadas pelo parlamento me vinculam como cidadão. Os
meus filhos, nascidos e crescidos nos EUA, decidiram viver em e contribuir para
Portugal. Porquê que o meu voto deve contar apenas 7% do voto de qualquer outro
cidadão que tenha contribuído materialmente, intelectualmente e geracionalmente
para Portugal? Noto que os EUA não retiram aos meus filhos o direito de voto a
100% para qualquer eleição no círculo nacional em que estão registados por
estarem a viver em Portugal (e terem dupla cidadania). E porque haveriam de
retirar? Contribuímos para ambos os países a todos os níveis, incluindo em
patriotismo.
Uma outra
justificação, ou receio, é que dado o elevado número de emigrantes, se estes tivessem
a mesma representatividade, Portugal poderia ser governado “por telecomando”
por quem não vive no país. Pelo que escrevi acima, é claro que pelo menos
grande proporção está materialmente envolvida, com muita “skin in the game”
em Portugal. É perfeitamente razoável que a Républica institua critérios para
que a cidadania seja mantida −por exemplo, os cidadãos americanos têm
que pagar impostos aos EUA onde quer que residam, havendo acordos bilaterais
com grande parte dos países para evitar dupla taxação. O que não é razoável é
que a cidadania seja retirada para os simbólicos 7%. Até porque a experiência
de 2.6 milhões de emigrantes deveria ser valorizada na deliberação democrática.
Afinal, quem melhor do que eles para saber porque tiveram que sair do país? Ou
quais os mecanismos que permitem fazer carreiras produtivas noutros lugares?
Pode Portugal continuar a dar-se ao luxo de ignorar esse feedback político?
Quem tem medo dele? Talvez um pouco mais de “telecomando da emigração” no poder
ajude a desenvolver um país em que os jovens não tenham que emigrar mais.
É importante
também ter em atenção que grande parte dos emigrantes portugueses não tem outra
nacionalidade. Quando Portugal lhes retira a sua representatividade,
reduzindo-a a 7% dos outros cidadãos, a grande maioria não tem
representatividade eleitoral noutro país. Ficam assim democraticamente
apátridas. Essa situação – na qual estive durante mais de 20 anos − é uma
afronta aos direitos de cidadania, e não deveria ser constitucional. Não me admira que a maioria dos emigrantes
não vote e ache esta última controvérsia hipócrita e apenas
usada para jogo partidário. Aliás, dada tamanha discriminação, advogo um movimento de desobediência
civil. Sugiro que é do interesse democrático que os emigrantes se mantenham
registados em círculos eleitorais nacionais em vez dos círculos de emigração
onde residem. Bem como organizarem-se em partidos com representação parlamentar
que advoguem pelo fim desta discriminação.
Ignorar a
cidadania dos que tiveram que sair por falta de oportunidade estará porventura
enraizada num país que no fundo ainda age como metrópole de uma Républica
imperial, com uma noção de nacionalidade desatualizada. São tiques de superioridade difíceis de ser
reconhecidos por um regime que imagina que exorcizou os fantasmas do antigo
regime. Mas quem como eu nasceu “branco de segunda” em Angola, está farto de
ser tratado como cidadão de décima classe num país para o qual já tanto
contribuiu.
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